Xeque ao rei
O salto que Gasperini está a promover na Atalanta pode não chegar para inverter o que vimos na Supertaça Europeia, no início da época, mas há-de ser suficiente para deixar o Real Madrid nervoso.
Palavras: 1243. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
Podemos gostar mais ou menos do futebol que se pratica, nuns e noutros casos, podemos até entreter-nos com tiradas demagógicas, daquelas que dizem que “os homens passam e os clubes ficam”, ou que “não há ninguém que esteja acima do emblema”, mas a verdade é que são os homens que constroem os clubes e que, bem feitas as contas, é em função das ações daqueles que estes têm mais ou menos sucesso. Hoje, quando em Bergamo se defrontarem o atual campeão europeu, o Real Madrid, e o vencedor da última Liga Europa, a Atalanta, há uma coisa evidente e indiscutível: a Atalanta vale em campo mais do que aquilo que gasta e o Real Madrid vale menos. E isso tem uma justificação. É que a liderança da Atalanta, feita a meias entre a família Percassi e Giampiero Gasperini, adiciona valor, enquanto que a do Real Madrid, de Florentino Pérez a Carlo Ancelotti, não é que lho retire, mas pouco mais faz do que gerir a abastança sem acrescentar.
Se em Itália já começa a falar-se de uma Atalanta candidata ao título é porque a equipa deu este ano um salto de qualidade em cima da que já aterrorizava os grandes clubes com o seu futebol de autor, as marcações homem-a-homem a todo o campo, a intensidade máxima em cada duelo e o rigor geométrico na ocupação de espaços. Já tem uns anos a famosa frase de Pep Guardiola, que dizia que jogar contra a Atalanta de Gasperini era “como passar uma hora e meia no dentista” e a verdade é que a equipa do velho mestre italiano soube ir assumindo novas identidades à medida que o mercado lhe levava jogadores importantes. E, acreditem, não é por adaptação à realidade que o faz. A Atalanta de 2024/25 já é mais equipa de assumir o jogo do que de se limitar a apertar na marcação para esticar em seguida. Mantém as saídas através dos centrais exteriores, a geometria do par de médios, com enorme destaque para Ederson, que está a fazer uma temporada enorme e pode ser o próximo jackpot bergamasco no mercado, mas juntou-lhe a capacidade para ter a bola que faz falta a quem quer ser grande. Tudo enquanto faz dinheiro no mercado e investe sobretudo em infraestruturas, com mais de 150 milhões de euros metidos na compra e modernização do antigo Estádio Comunale e na remodelação total do centro de treinos de Zingonia, já a pensar no dia em que possa formar os próprios craques, a exemplo do que fez com Scalvini e Ruggeri ou até com o guarda-redes Carnesecchi.
A maior prova de que o futebol não olha apenas ao dinheiro está nas posições relativas de Real Madrid e Atalanta na edição atual da Liga dos Campeões. É verdade que há muita razão em Madrid quando se diz que naquele clube as contas se fazem em Maio, que isto agora é só uma espécie de aquecimento para as verdadeiras decisões e que não passa pela cabeça de um careca que o campeão europeu não esteja lá na Primavera, mas neste momento o Real é 24º da tabela, com seis pontos, e dificilmente escapará já ao playoff, pois mesmo que ganhe os três jogos que lhe faltam não passará dos 15 que deverão ser insuficientes para a isenção, enquanto que a Atalanta é quinta, com 11 pontos, e poderá entrar direta nos oitavos-de-final mesmo que perca hoje, desde que vença depois as duas partidas restantes, chegando aos 17. E, no entanto, estamos a falar de um clube que na época passada se tornou o primeiro da história a superar os mil milhões de euros em faturação e de outro que gerou apenas 242 milhões em receita. De um clube que gasta 271 milhões anuais em salários e de outro que se fica pelos 60, abaixo até de qualquer dos três grandes de Portugal. De um emblema que não olha a gastos quando se trata de contratar mais um Galáctico e de outro que nos últimos três anos faturou sempre mais do que gastou nos mercados, com um “desinvestimento” total de 122 milhões de euros. Nestes três anos, de Bergamo saíram, sempre acima dos 50 milhões, jogadores como Christian Romero, Rasmus Hojlund ou Teun Koopmeiners, mas talvez nenhum futebolista exemplifique melhor o que é o projeto do que Bryan Cristante, esse mesmo, o que passou pelo Benfica.
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Cristante chegou à Luz em Setembro de 2014 como jovem promessa do Milan. Não se afirmou e foi sendo sucessivamente emprestado. Ao Palermo, primeiro, ao Pescara, depois, à Atalanta, em Janeiro de 2017. Gasperini sabia o que fazer com ele, a ponto de em Outubro desse ano o médio estar a estrear-se na seleção principal de Itália, equipa pela qual entretanto já somou 43 internacionalizações, jogando e ganhando uma final do Campeonato da Europa. Já o fez como jogador da AS Roma, a quem a Atalanta o vendeu pelo triplo do que por ele tinha pago ao Benfica. De quem é o mérito desta política senão dos homens que a desenham e, acima de tudo, que a colocam em prática? Da capacidade de diálogo entre Gasperini e os Percassi, o presidente Antonio e o seu filho Luca, diretor desportivo. Da sagacidade de se contratar jogadores que encaixem perfeitamente nas ideias do treinador e, mais ainda, que encaixem em ideias que têm evoluído, como se percebe pela comparação simplista mas correta entre as equipas de 2023/24 e 2024/25. A Atalanta de hoje ataca e contra-ataca mais, marca mais golos e é muito mais forte em posse do que era a da época passada. E o plantel não é assim tão diferente. Saiu Koopmeiners para a Juventus, chegou Mateo Retegui do Génova, Scamacca está cada vez mais combinativo e menos direto, Mario Pasalic ganhou importância na ligação ao ataque, tudo a provar que o treinador também consegue ver nos jogadores mais do que as valências que terão levado à sua contratação.
Um dia, Giampiero Gasperini vai sair da Atalanta, clube onde chegou em 2016, na sequência de uma carreira que não tinha sido propriamente anónima mas onde o ponto de maior destaque fora o clamoroso falhanço no Inter, em 2011. Embora seja cada vez menos provável que o faça para abraçar outro desafio, sobretudo no estrangeiro – vai fazer 67 anos em Janeiro – é provável que, nessa altura, alguém se lembre de dizer que “os homens passam e o clube fica”. E esta é, entre as frases verdadeiras, a mais nociva para qualquer projeto. A Atalanta que Gasperini deixar há-de ser bem mais forte do que aquela que encontrou, a que tinha sido 13ª do campeonato, com Edy Reja ao comando. Mas a não ser que lá entre alguém com a mesma capacidade de acrescentar valor – e não há muitos técnicos nessa condição na Europa neste momento –, o mais certo é que a equipa volte a um nível próximo do que é verdadeiramente. Porque são os homens que fazem os episódios de que se constroem as lendas dos clubes. E se a Atalanta neste momento está em condições de fazer xeque ao rei que é o Real Madrid é porque a liderá-la está quem a puxe para cima.
Não sei se o projeto da Liga dos Campeões não ficaria em risco com a eliminação do arrogante Real Madrid e espero que não haja da parte do sistema a tentação de os "forçar" a estar lá através de truques de arbitragem, para ajudar um clube de enorme valia mas que passa a vida a ser "levado ao colo", de forma a evitar a conversa da Super Liga. Espero que a Atalanta vença.