Xavi e o Barça no divã
O positivo na chegada de Xavi ao Barça não é a recuperação de uma ortodoxia que a equipa nunca perdeu. É tirar do insconsciente coletivo do balneário a desculpa ideal para cada derrota: Koeman.
A ortodoxia já está a celebrar o regresso de Xavi Hernández ao FC Barcelona, o reencontro entre a equipa culé e a sua filosofia de culto da bola, vista como tesouro máximo de que não se deve abdicar nunca. O antigo médio da equipa de Guardiola personifica todo o espírito que Johann Cruijff deu ao clube, mas enganem-se os que pensam que os problemas se resolvem dando um salto ao Qatar e resgatando um treinador que estava a marinar em vinha de alhos no Al Sadd há dois anos e meio, à espera de serem horas de cair na frigideira de Camp Nou. Os problemas do Barça precisam de trabalho de campo, sim, agradecerão uma clarificação de filosofia, pois claro, mas resolvem-se sobretudo no divã e nos gabinetes. O maior desafio de Xavi é o de ser terapeuta desta equipa, de forma a tirá-la da depressão em que se encontra e que a faz entrar a perder em qualquer jogo. E o do presidente Joan Laporta é o de lhe dar as condições para levar esse trabalho a bom porto.
Em Vallecas, contra o Rayo, no jogo que custou o lugar a Ronald Koeman, o Barça teve 69% de posse de bola e mesmo assim perdeu. Antes disso, no clássico com o Real Madrid, tinha tido 52% e também tinha perdido. Nos dois jogos, rematou mais do que os adversários. Como, aliás, lhe aconteceu nas três últimas derrotas – há a somar a essas duas o 0-2 contra o Atlético Madrid. O FC Barcelona está mal, perdeu cinco e só ganhou três dos últimos dez jogos, mas o seu problema maior não se resolve simplesmente com a decisão de guardar a bola. Para superar esta crise, havia que libertar a cabeça da equipa para que esta saiba o que fazer com – e sobretudo sem – ela. O semblante de Koeman no banco do Barça a cada jogo e as imagens degradantes de adeptos a deitarem-se em cima do capô do Porsche do treinador holandês quando este tentava abandonar o estádio, após a derrota com o Real Madrid, para fazerem selfies grotescas, só me traziam à memória a frase “Dead Man Walking” [“Morto a caminhar”, em tradução literal] que se grita no corredor da morte nos Estados Unidos antes de cada execução.
Koeman, no entanto, não fez tudo mal. Tendo em conta a dificuldade que era ter pela frente um presidente que desde o primeiro dia deu a entender que o suportava mas que, se pudesse escolher, não contava com ele, até fez mais coisas bem do que talvez fosse de esperar. Mas não era – não foi nunca – um fator de agregação para a equipa. Pelo contrário, era a desculpa perfeita para o inconsciente coletivo que mandava no balneário. Era um treinador de recurso, que só estava no cargo porque as dificuldades que o clube atravessa no plano financeiro não permitiam a sua demissão e a contratação de um substituto. Os jogadores sabiam disso. E, mesmo que andassem muito desatentos nas bolhas que os jogadores costumam frequentar, tanto Laporta como o próprio Koeman tratavam frequentemente de os lembrar que este era um casamento feito no Inferno, com declarações constantes de desamor e de compromisso forçado.
A decisão de trocar o treinador foi, assim, primeiro que tudo, um alívio. Foi um alívio para Laporta, que pode pelo menos iludir-se com o futuro. Foi um alívio para Koeman, que não fez nada para se ver metido neste filme. E foi um alívio para os jogadores, que perdem a desculpa perfeita para apresentar após cada nova derrota, mas que no ato colocam também para trás das costas a ideia de perder com que entravam em cada relvado de Espanha e da Europa. E isso ajuda.
O futuro imediato do FC Barcelona é, agora, Sergi Barjuán, outro histórico blaugrana, que sobe da equipa B para assegurar o interinato, uma vez que Xavi só deverá entrar em funções no próximo fim-de-semana. É muito possível que a equipa responda de forma positiva já amanhã, na receção ao Alavés, ou depois, a meio da semana, na decisiva deslocação a Kiev, da qual depende também muito o futuro do Benfica na Liga dos Campeões: se o Barça não ganhar na Ucrânia, os portugueses têm o caminho atapetado até aos oitavos-de-final. Mas isso é o imediato. O futuro do clube joga-se depois e joga-se muito fora de campo, na capacidade que Laporta revelar para solidificar uma solução ferida pelo facto de o treinador que agora escolhe ter estado ao lado de Victor Font, um dos candidatos que ele derrotou nas últimas eleições. Na capacidade que Laporta revelar para encontrar meios que permitam que as regras do Fair Play Financeiro deixem de ser ao mesmo tempo uma preocupação e outra desculpa na mente dos jogadores. Na capacidade que Laporta revelar para fechar contrato com Xavi, continuar a pagar a Koeman – e a Setién e a Valverde... – e mesmo assim cumprir as regras da Liga espanhola. São muitas coisas a depender de Laporta e da sua equipa – o que tendo em conta o passado recente não prefigura nada de bom...
No campo, com Xavi, pode até dar-se o caso de o FC Barcelona recuperar jogadores que Koeman desprezava, como Umtiti, Lenglet ou Puig – da mesma forma que outros, como Luuk de Jong, já sabem que os espera uma ‘via crucis’ até serem dispensados em Janeiro. Continuo a achar que este Barça, mesmo sem Messi e Griezmann, tem potencial para fazer uma boa equipa e para, pelo menos, assegurar um dos primeiros quatro lugares na Liga, acedendo à próxima Champions. Tem um excelente guarda-redes em Ter Stegen. Tem jovens promissores como Dest, Gavi, Pedri ou Ansu Fati – de Eric García não gosto particularmente, da mesma forma que me parece que Puig terá aqui a última oportunidade para mostrar ao que vem e que Mingueza ou Araújo são jogadores banais. Tem referências do clube, do tempo das vitórias, como Alba, Busquets, Sergi Roberto ou Piqué. E tem consagrados, como Agüero, Dembelé ou Depay (talvez seja tarde para Coutinho...), de quem se espera que façam a diferença. Não tem Messi – mas até disso tem de fazer o desmame. E Xavi, que jogou com Leo, sabe-o bem.