Queremos mesmo acabar com a "treta"?
Jorge Jesus voltou a dizer que o futebol em Portugal é "uma treta". Fê-lo depois de um grande espetáculo, mas na base tem razão. A questão é: queremos mesmo resolver isso?
Após o segundo desafio consecutivo que o Benfica teve de disputar a alta intensidade, sempre com dificuldades, Jorge Jesus voltou a carregar na “treta” que é o futebol em Portugal – e que os jogos de Vizela e Guimarães, no entanto, não foram. Pelo contrário: foram dois belíssimos espetáculos. Jesus escolheu mal a forma como se referiu ao primeiro momento, em Vizela, e talvez seja possível encontrar neste seu discurso uma maneira de tentar desviar as atenções do modo como quase empatava com a equipa de Álvaro Pacheco ou da incapacidade para segurar os dois golos de vantagem que chegou a ter face ao onze de Pepa. No entanto, Jesus tem razão: o futebol português está cheio de “tretas”, sejam jogadores que simulam lesões, que aproveitam qualquer toque para cair e pedir falta ou árbitros que funcionam ao mesmo tempo como cúmplices e forças motrizes deste fenómeno, uma vez que se defendem através do apito e geram reação com essas atuações defensivas.
O problema não é novo. Já me tinha referido a ele, por exemplo, aqui e aqui, sempre com uma base estatística. E até por ser um tema recorrente, teria sido mais razoável – embora pudesse também soar um pouco a vitimização... – que Jesus tivesse escolhido o jogo com o Bayern para falar dele. Ali, o Benfica desabou e deixou que o 0-0 aos 70’ se transformasse no 0-4 final. Aconteceu-lhe um pouco o mesmo que ao FC Vizela, no sábado, face a um adversário de maior poderio: o tubarão acelerou quando a presa já só pedia que ele acalmasse. E se no caso do FC Vizela a elevada intensidade de jogo a que aqueles jogadores não estão habituados gerou cãibras sucessivas, no caso do Benfica ante o Bayern não houve acumulação de lesões ou de entradas da equipa médica em campo mas a fadiga levou também a que diminuíssem a concentração e a rapidez de resposta a estímulos, permitindo que o resultado chegasse à goleada.
Ora, se é evidente que temos em Portugal um problema de fluidez de jogo, se todos vimos já em edições anteriores da Liga que isso prejudica o espetáculo e se, agora, os treinadores vêm dizer que depois têm dificuldade em fazer com que os jogadores respondam na Champions, por exemplo, contra adversários habituados a jogar a altas intensidades de forma regular, o que se percebe mal são as razões pelas quais ninguém faz nada para mudar isto. As razões pelas quais os critérios das arbitragens continuam a ser absolutamente casuísticos, tipo cada-cor-seu-paladar, às vezes a deixar jogar e noutras a apitar a cada mínimo contacto, em vez de assistirmos a uma tentativa de os normalizar no sentido de favorecer o espetáculo. Já todos sabemos por que razão os jogadores fingem – tentam tirar vantagem, seja ganhando faltas ou perdendo tempo – e por que razão os árbitros alinham na marosca – não querem ser alvo das maratonas de frames televisivos que temos a cada serão, no caso de deixarem passar qualquer coisa de levemente ilegal que acabe por dar em golo. O que não sabemos é por que razão quem manda neles (jogadores e árbitros) não faz nada – e aí só pode mesmo ser por inércia.
Só por isso, as pedradas que Jorge Jesus dá neste charco valem sempre a pena. É verdade que ele também não recua um milímetro se achar que pode tirar vantagem desportiva a pedir a marcação de faltas pelos mesmos contactos levezinhos ou que não hesita se a adrenalina do momento e a quase frustração o levar a ser injusto com colegas, como foi depois do jogo de Vizela com Álvaro Pacheco e os seus jogadores. Mas o que falta, mesmo, são posições conjuntas no sentido de nos levar a dar o passo que se impõe no sentido do futuro. O que falta é que tanto a Associação Portuguesa dos Árbitros de Futebol como a Associação Nacional dos Treinadores de Futebol e até o Sindicato dos Jogadores se preocupem com isto em vez de andarem a lutar contra os moinhos de vento que tantas vezes os ocupam. Falta que a Direção Técnica Nacional promova encontros entre treinadores de elite para produzir posições comuns e até que a Liga se debruce tanto com este tema como com as minudências que lhe fazem o dia-a-dia. Porque até isso acontecer, sempre que Jesus achar que tem de passar uma mensagem, vamos ficar a achar que o que ele quer é só desviar as atenções. E às vezes há ali muito mais do que isso.