"Vou embora!"
Insatisfeitos com o que tinham visto nos primeiros 45 minutos, os adeptos qataris aproveitaram o intervalo para sair de fininho. As imagens das bancadas semi-vazias deixaram sinais de preocupação.
Recordam-se daquela célebre conferência de imprensa de Abel Ferreira, quando ele, ainda no SC Braga, bateu duas vezes com a palma da mão direita nas costas da esquerda e disse o que faria se não ganhasse? Já viram de certeza, que a coisa deu mêmes atrás de mêmes. “Vou embora!”, exclamou num discurso em crescendo, no qual se lhe via fogo no olhar. Ora foi isso que fez ontem boa parte do público qatari que esteve no jogo de abertura deste Mundial, no qual a seleção da casa se viu completamente impotente para fazer frente a um Equador que nem precisou de ser assim tão forte. As imagens das bancadas mais vazias depois do intervalo foram partilhadas por toda a imprensa mundial, como se vê na primeira página da Marca ou do The Guardian, e certamente causam alguma preocupação na FIFA, que desta forma vê que o seu esforço de inclusão de novos mercados no circuito mundial do futebol esbarra numa coisa tão simples como a impreparação da equipa da casa.
O dia em Doha começou com a cerimónia de abertura, um espetáculo bem encenado, como o são sempre, bem superior ao que vimos há quatro anos na Rússia, por exemplo. O de 2022 contou com a surpreendente participação de Morgan Freeman, ator norte-americano que é universalmente reconhecido pelo seu ativismo em defesa dos direitos humanos, em dueto com Ghanim al-Muftah, um youtuber qatari que nasceu com uma rara síndrome de regressão caudal, que lhe afeta o desenvolvimento da parte inferior do corpo. A mensagem de inclusão era clara, provavelmente até demasaido aproveitadora no plano sentimentalão mas menos inapropriada do que o discurso feito pelo presidente da FIFA, Gianni Infantino, na véspera. E, depois do desfile das mascotes de todos os Mundiais, essa mensagem foi reforçada pelo emir do Qatar, Tamin bin-Hamad al-Thani, que numa manifestação de conciliação até se sentou ao lado do príncipe da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman. Tendo em conta a rivalidade geo-estratégica existente entre estas duas nações do Golfo, essa foi uma novidade inesperada. “Que adorável será que as pessoas ponham de parte aquilo que as divide para celebrarem a diversidade e o que as aproxima”, disse al-Thani, pedindo uma espécie de benefício da dúvida ao Mundo para o seu regime.
Quem não lhe deu esse benefício foi, por exemplo, o Reino Unido. A BBC não transmitiu a cerimónia de abertura, substituindo-a por um programa que abordava o tratamento dado aos trabalhadores migrantes, a repressão e severa punição da homossexualidade no Qatar e, por atacado, a corrupção na FIFA. Gary Lineker, o ex-internacional inglês que é agora anfitrião da programação de futebol no canal estatal britânico, justificou assim a posição: “A FIFA anda há muito tempo a pedir que nos limitemos ao futebol. Pois bem, é o que faremos”. A contestação ao regime qatari, de resto, continua a ter no Reino Unido o seu foco principal. Harry Kane, o capitão da seleção inglesa, que hoje se estreia frente ao Irão, parecia até ontem firmemente decidido a usar a braçaceira One Love, de modo a celebrar a diversidade, o mesmo sucedendo com Gareth Bale, o capitão de Gales, que mais tarde entrará em campo em partida face aos Estados Unidos. Kane, contudo, poderá abdicar do protesto face à ameaça de vir a ser punido com um cartão amarelo instantâneo, mal o jogo comece. Ontem circulava o rumor de que a FIFA poderia até enviar delegados aos balneários, antes dos jogos, para impedir que qualquer seleção entrasse em campo com peças consideradas inconvenientes, pois apesar da ameaça os britânicos ainda não tinham decidido o que fazer. Daqui a um par de horas saberemos como o caso terminou, pois tanto Inglaterra como Gales estão no programa para o segundo dia de prova.
O primeiro passou muito pela demonstração de incapacidade da equipa do Qatar, incapaz de fazer frente ao Equador no jogo de abertura. À meia-hora, já os equatorianos ganhavam por 2-0, tendo tido mais um golo anulado por um fora-de-jogo milimétrico. Eu já escrevi sobre o jogo de abertura nas Conversas de Bancada de ontem, chamando ao futebol da seleção qatari uma espécie de tiki-caca, tão fraco foi o crescimento demonstrado dentro do estilo de jogo que Félix Sánchez trouxe de La Masía. A generalidade da imprensa internacional aponta a impreparação da equipa da casa para jogar a este nível – e aqui têm a crónica de Vincent Duluc no L’Équipe. Do lado equatoriano, celebram-se os dois golos de Enner Valencia, o herói do primeiro dia de competição – razão para que a Gazzetta dello Sport recorde a história do atacante que está atualmente ao serviço de Jorge Jesus no Fenerbahçe mas que já passou por momentos muito atribulados, como este, em que teve de simular uma lesão e fugir do campo, na Rússia, dentro de uma ambulância, para não ser preso.
Hoje vamos ter o primeiro dia quase em cheio do Mundial, com três jogos – e nas primeiras duas jornadas serão até quatro. Como não houve o desafio das dez da manhã, houve mais tempo para reparar na conferência de imprensa matinal da seleção portuguesa, que teve uma estrela surpresa: Cristiano Ronaldo. Numa altura em que, como podem ver abaixo, nos onze links de leitura diária acerca do Mundial, até já o The Athletic está a fazer a pergunta que muitos têm feito em Portugal – estará a seleção melhor sem Ronaldo? –, o capitão veio fazer o que pode para fechar o caso, negando o mau relacionamento com os colegas e pedindo aos jornalistas que “falem da competição”. Mas isso já aconteceu hoje. E disso só amanhã haverá reflexo na imprensa internacional e nestas Entrelinhas.
Conversas de Bancada
A Ler
El cebo de Messi fue Aimar, por Juan I. Irigoyen, no El Pais, a contar toda a história do regresso de Messi à seleção argentina e de como Aimar ajudou Scaloni a convencer o astro a voltar atrás com a renúncia, a começar numa mensagem de Whatsapp.
L’Iran loin de sa sélection, por Antoine Maumon de Longevialle, no L’Équipe, revelando que a população revoltosa do Irão está insatisfeita com a falta de apoio explícito dos jogadores da sua seleção à revolução em curso e que, por isso, não vai apoiar a equipa.
Iran may be riven by protests – but do not underestimate them, por James Montague, no The Daily Telegraph, aparentemente sem link para este texto em particular. Tem declarações do ex-selecionador Afshin Ghotbi e de Carlos Queiroz, a fazer a ponte entre a situação do país e o valor da equipa.
Southgate takes his biggest gamble with unwavering faith in Maguire, por Jacob Steinberg, no The Guardian, descrevendo o risco que o selecionador inglês está a correr ao manter a aposta no defesa-central, puramente com base na sua reputação.
El último desafío de van Gaal, por Ramon Besa, no El Pais, onde se conta a história vivida por Van Gaal, um “cruyffista odiado por Cruyff” antes deste Mundial, que aborda enquanto luta contra um cancro na próstata.
L’Afrique cherche sa voie, por Hervé Penot, no L’Équipe, regressa à previsão de Pelé, que no início dos anos 70 dizia que em breve uma equipa africana poderia ser campeã do Mundo, para fazer o ponto da situação em dia de estreia do Senegal.
How Gregg Berhalter made the US Team his own, por Andrew Keh, no The New York Times, a explicar a transformação operada pelo selecionador norte-americano depois do falhanço no Mundial de 2018.
Portugal confront the unthinkable – are they better off without Cristiano Ronaldo?, por Tim Spiers, no The Athletic
Leur trésor de guerre, por Damien Degorre, no L’Équipe. A história de como os investidores qataris não podiam conceber que Kylian Mbappé aparecesse no seu Mundial sem ser como bandeira do seu clube, o Paris Saint-Germain.
Jouer à l’automne, un défi pour la préparation physique des joueurs, por Walid Kachour, no Le Monde, ouvindo especialistas para definir o que muda na preparação dos jogadores com um Mundial a meio da temporada.
La liberación de yerno Ferran Torres, por Ladislao J. Moñino, no El Pais, revelando a forma como a imprensa espanhola foi mantendo privada a relação do atacante do Barça com a filha de Luis Enrique, até o selecionador a revelar no streaming que faz na Twitch.
A Ouvir
O Equador ganhou ao Qatar no jogo de abertura do Mundial e as sensações entre os que estão no Mundial a acompanhar a “tricolor” foram certamente boas. Costumo acompanhar a opinião curta e grossa de Alex Aguinaga, o ex-internacional equatoriano que está no Qatar ao serviço da FOX Sports, mas hoje de manhã ele ainda não tinha feito subir a última edição do seu FutVox Ecuador. Há-de cair durante o dia de hoje – é uma questão de estarem atentos. Mais longos nas suas análises, mas igualmente satisfeitos estavam Jaime F. Macias e Eduardo Biscayart, no seu Fútbol Infinito, que se propõe acompanhar de forma igualmente próxima as equipas americanas neste Mundial. O episódio desta manhã elogia Gustavo Alfaro pela forma como atacou as linhas qataris com um “duplo nove” e “dois extremos muito verticais” e põe em causa a decisão do VAR anular o que podia ter sido o primeiro de três golos de Valencia por não se perceber bem quem toca a bola no momento em que é assinalado o fora-de-jogo.
A ver
Inglaterra-Irão, 13h, Sport TV1
Senegal-Países Baixos, 16h, Sport TV1
Estados Unidos-Gales, 19h, RTP1 e Sport TV1
Antes da cerimónia, tambem num canal" creio a sic noticias" transmitiu um programa documentário sobre o que esteve por trás desta atribuição da organização da competição ao Catar, com entrevistas a Blater, Platini etc.
Creio que os direitos humanos são quem mais vai ganhar so serem tanto falados, mas sem nenhuns resultados a obter, porque naquele poder, ninguem toca.