Pensar, gastar, ganhar
O Manchester City-Real Madrid de hoje é o exercício perfeito para acabar com os dualismos. Porque seja qual for o ângulo, Guardiola e Ancelotti pensam, gastam e ganham em medidas semelhantes.
Esqueçam os dualismos em que, mais por comodismo do que por comodidade, se habituaram a dividir o Mundo. Guardiola? Inventa muito. Ancelotti? Um líder tranquilo. O City? É fruto do dinheiro do Abu Dhabi. O Real Madrid? Um bastião do poder dos sócios. Numa coisa os dois coincidem: são projetos indiscutivelmente ganhadores, razão pela qual lutarão hoje por uma vaga frente ao Inter na final da Champions. Não há favoritos, seja porque o Manchester City compensa a falta de pedigree com um futebol híper trabalhado ou porque a simplicidade do Real Madrid é incrementada por um histórico de “serial winner”, mas os dois treinadores continuam a ter de responder às mesmas perguntas e a alimentar os mesmos estereótipos. Nas conferências de imprensa de ontem, Ancelotti, que hoje suplantará Alex Ferguson como o técnico que mais jogos dirigiu na Champions (191), reforçou o receituário simples que lhe é colado, apelando a valores como a “coragem” e o “caráter” dos seus jogadores. O que é que isso quer dizer? Pois bem: nada. É do mais puro senso comum que para se ganhar uma meia-final da Liga dos Campeões é preciso coragem e caráter. E mais golos do que o adversário, também: “se têm que marcar, que o façam cedo, para nos dar tempo de reagir”, disse. Sai um Prémio Nobel! Do outro lado, Guardiola teve de tranquilizar os jornalistas presentes: “Não se preocupem, malta! Não vou inventar nada”, assegurou. Como se nos períodos entre jogos o catalão vivesse enclausurado num laboratório a criar novas formas de jogar futebol – quando o jogo dele é do mais simples que pode ver-se, baseado no passa e desmarca que se ensina desde os infantis. A reputação de comandante pacato, que Ancelotti alimentou até no título da autobiografia – “Liderança tranquila” – e fez por popularizar, por exemplo, com as fotos de charuto na boca, a celebrar vitórias como “padrinho” dos seus jogadores mais esfusiantes, contrasta com a fama de cientista sobrepensador de Guardiola, sobre cujo método já foram escritos vários livros. Mas, independentemente disso tudo, os dois são dos mais competentes treinadores do futebol mundial. Da mesma forma que os dois clubes se tornaram potências do jogo na Europa à custa disso, da competência dos treinadores, mas também do dinheiro que foram canalizando para o reforço dos seus grupos. Essa ideia de que o Manchester City é resultado do investimento do grupo bilionário que o comprou e de que o Real Madrid, sim, é puro, porque o clube ainda pertence aos sócios, além de nascer de um conservadorismo assustador, também não encontra reflexo na realidade. Antes de serem grandes, todos os clubes foram pequenos. Sim, até o Real Madrid. Todos tiveram um ponto zero, um ponto em que, à custa de vitórias, de proporcionarem aos seus jogadores melhores condições do que os rivais, atraíram os melhores praticantes e, mais tarde, mais adeptos – porque ganhavam mais títulos. Faz alguma diferença se isso foi feito na primeira metade do século XX, quando não havia fair-play financeiro, ou no século XXI, quando o futebol acentuou a dimensão de negócio? O City gastou 700 milhões de euros nos últimos cinco anos em transferências? Sim. Mas o Real Madrid gastou 630 milhões e já se prepara para investir forte e feio em Bellingham e – diz-se – Mbappé no próximo verão. Faz alguma diferença que um clube pertença a um grupo económico e outro aos sócios, se estes elegem administrações que o gerem como um grupo económico? Não. Hoje à noite, quando se souber quem ganha, vamos ser atropelados por conclusões tão precipitadas como validadas por uma perceção dual de uma realidade que é muito mais complexa. Será a vitória do dinheiro ou a vitória da tradição. Só que não.
O charme não se fabrica. Uma coisa é evidente e levará seguramente mais cem anos a mudar: o charme não se fabrica nem se compra. Constrói-se. Ainda hoje, o Telegraph assumia que se um dia virmos Vini Jr e Haaland como colegas de equipa, isso seguramente acontecerá em Madrid e não em Manchester. E isto não tem que ver com os clubes ou com o seu pedigree, que leva décadas a construir. Tem que ver também com as cidades. Viver em Manchester não há-de ser das coisas mais agradáveis do Mundo. Dizem nas notícias que Bernardo Silva está recetivo a ofertas do Paris Saint-Germain e que Gundogan seguirá certamente o caminho de Barcelona. Essa é a vantagem de Madrid, neste momento. Seja porque o clube já está no lote dos grandes há tempo suficiente para que ninguém imagine que ele possa de lá cair ou por se ter implantado numa cidade agradável, os jogadores do Real olham para o compromisso com o emblema como uma coisa duradoura. Os do City veem as coisas de forma diferente. Estão ali para cumprir o sonho de ganhar. E depois logo pensam noutras coisas.
Inter, naturalmente. O primeiro finalista da Champions foi conhecido ontem, sem surpresa nem emoção. O Inter já tinha ganho a primeira mão, voltou a ganhar na segunda, com um golo de Lautaro Martínez, e voltou a uma decisão pela primeira vez desde 2010. Desta equipa de Simone Inzaghi se pode dizer que joga menos do que a de então, quando José Mourinho fez das suas fraquezas forças e impôs os escassos argumentos de que dispunha a Chelsea, FC Barcelona e Bayern Munique. Foi o ano da “tática do Airbus” para contrariar o Barça de Messi e Guardiola – seria híper pensamento?. Foi o ano de Milito e Sneijder como homens decisivos. Esta equipa tem mais meios, mas terá menos treinador e menos ideia. Pode ganhar? Pode, é evidente. Mas seja quem for que lhe surja do outro lado, isso não seria um bom sinal para o futebol.