Uma obra de autor
A Atalanta, que ontem infligiu a primeira derrota da época ao Leverkusen, é uma equipa única, muito mais por questões táticas do que de talento. É uma obra de autor, com a assinatura de Gasperini.
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Já foi há uns cinco anos que Pep Guardiola comparou a experiência de defrontar a Atalanta de Gianpiero Gasperini com uma ida “à cadeira do dentista”, de tão desagradável podia tornar-se. Por essa altura, também, talvez uns meses depois, lembro-me de falar com o César Peixoto, antes ou depois de um programa televisivo em que estivemos ambos, e de ele me chamar a atenção para o facto de haver muito nos defesas-centrais do Sporting de Rúben Amorim, que por essa altura dava os primeiros passos, inspirado nos centrais da Atalanta de Gasperini. Daí para cá, começámos a ver muita coisa de Gasperini nas nossas equipas... Vimos os centrais progressivos de Amorim ou Schmidt, a pressão individual subida de Jesus ou de Conceição. E a forma justíssima como a Atalanta obliterou ontem o Leverkusen de Xabi Alonso, na final da Liga Europa, diz-nos muita coisa. Diz-nos que Guardiola tinha razão, primeiro. E diz-nos que as melhores equipas portuguesas podem perfeitamente ganhar uma Liga Europa. Desde que o queiram com tanta vontade como o quis este ano a Atalanta de Gasperini.
Há dois traços fundamentais na Atalanta de Gasperini, obra de autor criada desde 2016 pelo homem que uma vez, num Pescara-Nápoles, rasgou inadvertidamente o lábio de Maradona com a aliança de casamento, ao abrir demasiado um braço na disputa de uma bola. Um, e é por aí que tem de se começar, porque é isso que aproxima esta Atalanta daquele ruído que faz a broca do dentista, é a marcação impiedosa, feita à base de referências individuais, logo na saída de bola do adversário. Muito do sucesso de ontem esteve na forma como Lookman, Scamacca e De Ketelaere morderam os calcanhares a Tapsoba, Tah e Hincapié e como, depois, nas duas alas, Zappacosta e Ruggeri encostaram em Grimaldo e Stanisic e finalmente como Koopmeiners e Ederson engoliram Xhaka e Palacios ao meio. Nos momentos sem bola, o jogo desta Atalanta é asfixiante, uma teia de futebol fisicamente imponente que não deixa pensar nem respirar, quanto mais organizar. O outro é a forma como os centrais de Gasperini crescem com bola, invadindo as zonas de criação, tanto por dentro como por fora, em movimentação coordenada com os alas. Djimsiti e Kolasinac converteram-se em armas atacantes, da mesma forma que o faz tão bem o promissor Scalvini, já na linha de sucessão. Este não é um futebol insuperável – exige mobilidade, contra-movimentos, gente capaz de receber de costas e virar-se para se impor no um para um. Mas é um futebol tão exigente que muitas vezes rouba aos adversários a capacidade de pensar.
O Leverkusen, campeão alemão, equipa invicta esta época até ontem, já andava a brincar com o fogo há algum tempo, deixando adversários ganhar vantagem com uma frequência estranha para depois os surpreender com golos nos descontos. Mas o que se viu ontem em Dublin foi mais do que isso. Foi uma equipa anulada na sua forma de ser, como se a broca do dentista lhe tivesse invadido, não a cavidade de um molar cariado, mas o cérebro que lhe comanda os movimentos. É claro que este tipo de futebol não é invencível. A Atalanta perdeu dez vezes na Serie A esta época, duas delas com o Inter e outras tantas com o Bolonha, por exemplo. Mas a tradição do homem-a-homem durou mais do que o normal em Itália. Mesmo questionadas por uma série de profetas da revolução zonal do final da década de 70, em plena década de 90 ainda se viam equipas a jogar assim na Liga italiana. Enquanto ainda eram futebolistas, os treinadores italianos de hoje viveram dentro de campo com essa realidade, fosse porque eles mesmos a interpretavam ou porque tinham de a contrariar. Para eles, é como se tivessem de ir ao dentista todas as semanas e isso já não os incomodasse assim tanto, por se ter tornado rotineiro. Os outros europeus, contudo, sofrem, porque mesmo que saibam qual é o antídoto não estão assim tão habituados a pô-lo em prática.
A caminho da vitória na Liga Europa, a Atalanta ganhou por 3-0 ao fenomenal Leverkusen de Xabi Alonso, a um banal Olympique Marselha e ao credenciado Liverpool FC de Jürgen Klopp, que podia até estar a pensar noutras competições, mas continua a ser uma equipa de nível superlativo. Ainda ontem Gasperini destacava isso mesmo. “Batemos as equipas que naqueles momentos lideravam os campeonatos de Inglaterra, de Portugal e agora da Alemanha”. O Sporting, que teve a hipótese de repetir os confrontos – foi quatro vezes ao dentista jogar com a Atalanta, duas na fase de grupos e outras duas nas eliminatórias –, sofreu com o choque de realidade que foram os primeiros 45 minutos do primeiro jogo, em Alvalade. Ao intervalo estava a perder por 2-0 e a levar um chocolate que trazia à memória as goleadas ali encaixadas contra o Ajax de Erik Ten Hag e o Manchester City de Guardiola, em 2021/22, ambos na Liga dos Campeões. E é aí que se marca a diferença. Aí se encontram as razões pelas quais nunca mais, nos 315 minutos de confronto que se seguiram, a Atalanta conseguiu ser superior ao Sporting: essas cinco horas e pouco fecharam com 4-4 em golos e até os oitavos-de-final podiam ter caído para qualquer dos lados. É que esta Atalanta de Gasperini é uma obra extraordinária, a tal equipa de autor, mas não tem o talento de uma grande equipa de Liga dos Campeões. Lookman pode resolver um jogo, como fez ontem, Scamacca é um ponta-de-lança complicado de enfrentar, porque é um tanque mas tem um belíssimo pé direito, vê-se o talento de Koopmeiners ou De Ketelaere, mas nenhum destes jogadores é transcendente se visto individualmente.
O que mais marcou a diferença nesta Liga Europa foi a inadequação tática da maior parte das equipas ao futebol da Atalanta e a vontade inexcedível que a equipa de Bergamo demonstrou de ganhar a competição. Seja porque não conquistava um troféu há 61 anos, desde a Taça de Itália de 1963, ou porque o próprio Gasperini quer experimentar coisas novas mas não queria sair sem somar o seu primeiro título como treinador, a Atalanta queria mais do que tudo uma vitória na final de ontem. E se, vista daqui, a questão tática era superável, a da vontade já não o é. Vamos ter de amargar muitos anos até podermos ver uma equipa portuguesa ganhar ou estar numa decisão de uma prova como a Liga dos Campeões, só acessível aos talentos que os cofres dos nossos maiores clubes não podem pagar. A Liga Europa, contudo, mais ainda a partir do momento em que vamos deixar de ter despromoções da Champions após a fase de grupos, está ao nosso alcance, desde que chegados os meses de Março e Abril haja vontade de olhar para a prova com a seriedade competitiva que nos tem faltado, desde que haja um pouco mais de ambição e menos pragmatismo de se achar que é mais fácil chegar a uma das vagas nacionais na Champions a ganhar jogos de campeonato do que a fazê-lo vencendo cinco partidas internacionais.
O Sporting podia ter ganho a esta Atalanta e não ganhou por Amorim não quis saber. Infelizmente os nossos treinadores, Amorim aqui não é excepção, desconfiam dos seus plantéis, não percebem a qualidade que têm em mãos e continuam convencidos que ou ganham uma coisa, ou ganham a outra. Isto é falta de ambição, cultura desportiva e de confiança. Ironicamente, hoje seria mais fácil ir à Liga dos Campeões, se não olhassem para as competições unicamente pelo dinheiro que dão. E o pior de tudo é que os adeptos já se convenceram do mesmo.