Uma metáfora em Anfield
O Liverpool FC-Manchester City mostrou-nos como a perspetiva orientada para os dados foi responsável por uma boa escolha de substituto para Klopp e como Guardiola será relevante na mudança do plantel.
Palavras: 1317. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
O Liverpool FC-Manchester City foi uma metáfora perfeita para entendermos os desafios enfrentados por quem procura substituir um treinador – algo que, regra geral, em Portugal não se segue nem pensa, tantas são as mudanças promovidas a meio de cada época – ou renovar um plantel, mantendo a identidade que mais interessa, que é a da equipa. E foi-o por duas razões. A primeira devido ao caso de sucesso flagrante do Liverpool FC na busca de um substituto para Jürgen Klopp, que a meio da época passada resolveu que já não queria mais daquilo. A segunda à conta da demonstração de que se algo está mal no Manchester City – e está... – não há-de ser seguramente Pep Guardiola, mesmo que ele tenha perdido a fleuma e a elegância que lhe são próprias ao responder com seis dedos erguidos aos adeptos locais que lhe cantavam “You’re gonna get sacked in the morning” [“Vais ser despedido de manhã”]. É que por mais que as pessoas queiram separar os treinadores entre bons e maus e perguntar nas conversas de café “o que é que fulano já ganhou para ser colocado num nível tão alto”, o que está em causa quando se avalia estes processos é sempre uma questão de identidade e adequação. Do treinador à equipa.
O tema voltou-me à mente ontem, quando pelo feed me passou um tweet que se servia da página DataMB (há link aqui e a coisa é gira para fazer umas brincadeiras comparativas, entre equipas ou jogadores) para provar forte continuidade entre o futebol de Sérgio Conceição e o de Vítor Bruno no FC Porto. Fui fazer eu próprio essa comparação e percebi que sim, que de acordo com aquelas métricas mais básicas o FC Porto continua muito parecido com o que era – a diferença é que não só acho isso normal, porque muitos jogadores são os mesmos, como até acho positivo, porque pretender mudar radicalmente a ideia por trás de uma equipa pode redundar num fracasso total. É claro que as ferramentas gratuitas à disposição de quem quer brincar um pouco aos dados não se comparam com aquilo que move os grandes decisores, mas foi muito assim que o Liverpool FC escolheu o sucessor de Jürgen Klopp. O alemão disse no final do Inverno passado que queria fazer um ano sabático e imediatamente quem tinha a responsabilidade de lhe escolher o sucessor – o Liverpool FC do Fenway Sports Group é, desde a subida na hierarquia do entretanto regressado Michael Edwards, um dos clubes mundiais que mais trabalha com métricas – pôs-se em campo, para perceber quem devia ser contratado para afetar o mínimo possível o equilíbrio da equipa. E atenção, que este não era um caso de não se querer mexer no que estava bem, que o clube tinha perdido as últimas quatro edições da Premier League para o City. Era um caso de definição clara daquilo que era o futebol que a administração queria ver continuado, por ser o que mais servia ao património do clube, que são os jogadores, e de identificação de um treinador que fosse capaz de o continuar e até, quem sabe, de o fazer evoluir.
Não tivesse o Liverpool FC disparado na liderança da Premier League, onde já tem nove pontos de avanço de Arsenal e Chelsea e uns impensáveis onze do Manchester City, e a aura que já rodeia Ruben Amorim, de forma até algo precipitada, certamente serviria aos adeptos do Manchester United para lembrarem aos rivais do noroeste que rejeitaram aquele que acabou por ser o substituto de Erik Ten Hag em Old Trafford. E aquilo que tínhamos de pensar aqui não era que um era bom e o outro mau. A Europa está cheia de bons treinadores e a divisão principal no topo não é entre bons e maus – os maus não chegam lá. No topo, há treinadores de futebol de autor e treinadores que gerem planteis. Há treinadores com títulos ganhos e outros que ainda os não ganharam – e isto só será um sinal de preocupação se já tiverem anos de carreira suficientes para justificar a acumulação de um palmarés mais preenchido. Regra geral, uns não são necessariamente melhores nem piores do que os outros. São é adequados ou desadequados para cada situação. No caso do Liverpool FC, aquilo que as notícias relatam é que Amorim chegou a ser ponderado como eventual substituto de Klopp, mas que depois as métricas das equipas de Slot levaram o Fenway Sports Group a escolhê-lo a ele e a deixar de lado o português. E, aparentemente, foi uma boa escolha. Slot não tem por isso de ser melhor ou pior do que outras escolhas possíveis, mas os resultados provaram que era a mais adequada numa lógica de continuidade que vai muito além da opção por um 4x3x3 ou por um 3x4x3 como sistema preferencial.
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Ora no Manchester City a questão é bem diferente. A escolha foi feita em 2016 e já deu muitos títulos mas enfrenta neste momento dificuldades até há pouco impensáveis. Dias depois de ter perdido três golos de vantagem contra o Feyenoord, que num ápice transformou um 0-3 num 3-3, e de se ter automutilado com as unhas de forma depois bem visível nas câmaras das flash-interviews, Guardiola personificou uma das formas de estar mais enraizadas da que era a sua anterior nemesis, José Mourinho, e que passa por atacar nas manifestações públicas sempre que se sente acossado. Não foram apenas os seis dedos erguidos para a bancada, que tanto podiam representar os seis títulos que já ganhou na Premier League como o total de vezes que perdeu nos últimos sete compromissos. Foi o que o catalão disse no final que trouxe à memória aquele dia em que Mourinho lembrou a uma sala cheia de jornalistas que tinha mais troféus do que todos os outros treinadores da Premier League somados. “Foi para lhes recordar que tenho mais títulos da Premier League do que o clube deles”, disse Pep meio a brincar meio incomodado. E o incómodo é natural, porque o que está a falhar no City já não são as ideias ou a sua aplicação – é mesmo o seu património mais importante, um grupo de jogadores que começa a parecer envelhecido e, porque não admiti-lo, com falta de apetite por mais e mais vitórias.
Questionado acerca da capacidade que o grupo pode ter para responder à crise, Ruben Dias afirmou numa flash-interview que era jogador de uma das equipas que mais troféus ganhou em Inglaterra. Mas isso é importante? Sim e não. Sim porque pode blindar aqueles jogadores contra os tremores de uma situação de crise como a atual, não porque não é por se ter ganho que se continua a ganhar. Aliás, muitas vezes, o facto de se ter ganho leva os jogadores a ter menos fome – há até treinadores que gostam de renovar os grupos de forma regular para manter esta vontade de vencer. Depois, o passado de sucesso não erradica nos observadores externos a noção de ocaso de um grupo que tem de começar a ser gradualmente substituído até pelo fator-idade. E aí, antes de se olhar para as métricas, para os dados, para o total de golos marcados, assistências, duelos ganhos, passes progressivos, desarmes ou interceções de cada potencial reforço, é preciso definir qual é a ideia. Foi por isso que a renovação de contrato de Guardiola se tornou o primeiro passo deste processo. É que, caso contrário, a Hugo Viana restaria uma dupla tarefa quando chegasse a Manchester. Não só teria de renovar o plantel como teria de chefiar a busca por quem pudesse substituir o treinador. E tudo com uma opção filosófica por trás: continuidade ou mudança?
Fiquei sem perceber de que forma a análise de dados conduziu à escolha de Arne Slot e não de outro. Por outro lado, há situações em que não dá para aplicar essa análise, creio eu, quando o treinador está em inicio de carreira e tudo o que mostrou foram traços de personalidade e de comunicação que os dados não alcançam. Lembro-me de AVB em 2009 ao fim de poucos jogos como treinador da Académica com um modesto desempenho, e talvez tenha sido isso que levou à escolha de João Pereira.
Só discordo que não haja maus treinadores, claro que há, como há maus jogadores e maus dirigentes, ou que o palmarés não seja também importante. Basta olhar para o carrossel da primeira liga para ver os maus.