Uma máquina oleada
A atacar, o Sporting é a equipa com os princípios coletivos mais bem trabalhados nesta Liga. Mas mesmo assim Gyökeres conta muito. Daí que Amorim até brinque: “Levem antes o Banza, que é mais barato".
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O Sporting respondeu às vitórias de FC Porto e Benfica em dois campos complicados com oito golos a um Casa Pia que, é certo, já defendeu melhor, mas que ainda assim chegam para fazer um score que os leões já não conseguiam no campeonato desde Fevereiro de 1974, quando Yazalde ainda marcava de verde-e-branco. Mas muita coisa mudou no futebol nestes 50 anos. O que já li acerca desse Sporting, que foi campeão e levou o argentino à Bota de Ouro, foi que tinha dois extremos – o veloz Marinho à direita e o driblador Dinis à esquerda – que criavam muitos desequilíbrios e assistências. Hoje, o Sporting funciona um pouco ao contrário. Ainda que por vezes lhe falte a clareza para escolher a melhor opção, se o remate ou o passe no momento certo, já é o ponta-de-lança, Gyökeres, quem mais contribui para a destruição das organizações defensivas dos adversários, com sprints constantes em busca dos grandes espaços e uma potência invulgar no um para um, que o torna difícil de parar se o deixam virar-se para o lado certo. Daí que nem o facto de Yazalde, nesses 8-0 ao Oriental, ter feito cinco golos e de Gyökeres, nos 8-0 de ontem, ter marcado “apenas” dois chegue para o menorizar. Por alguma razão, nestes três dias que faltam para fechar o mercado, os sportinguistas estarão em suspenso para saber se alguém comete a heresia de vir cá bater os 100 milhões de euros da cláusula de rescisão do sueco – o que já escrevi me parece improvável, mas pode sempre vir a suceder, deixando Amorim sem alternativa nem tempo para a procurar. “Dir-lhes-ia que podem comprar antes o Banza, que tem quase tantos golos, mas em menos jogos, e é mais barato”, brincou Rúben Amorim na flash-interview, já depois de o próprio Gyökeres ter feito uma expressão impagável quando a ele lhe perguntaram se podia prometer aos sportinguistas que iria ficar no clube após o fim da época. “No fim da época? Ainda estamos em Janeiro...”, respondeu. O Sporting é, hoje, a equipa com princípios coletivos mais bem oleados na Liga, sobretudo a atacar. A forma como os leões fazem uso da capacidade de passe vertical de Gonçalo Inácio ou Hjulmand para transformarem o seu 3x2x5 no momento ofensivo em 3x1x6, com a entrada do segundo médio – agora Pedro Gonçalves – no espaço entre o atacante e o ala esquerdo, enfraquecendo propositadamente a zona de organização para reforçar a de criação, torna-os extremamente difíceis de contrariar a não ser numa lógica de marcações individuais como as que foram postas em prática pelo SC Braga, mas até isso dependerá sempre da qualidade dos defensores e de alguma fortuna, como se viu nas três bolas que os leões meteram nos postes no jogo de Leiria. Ainda assim, não é de todo a mesma coisa ter essa linha de seis na frente com as opções de busca antecipada de profundidade que dá Gyökeres ou com um ponta-de-lança que precise de receber mais vezes em apoio, entre linhas, sem a fome, o poder físico, o sprint e a explosão do sueco. Trincão está a subir – e em contrapartida Edwards está a descer, o que mostra como é difícil ter um plantel vasto em boa forma simultânea, pois a boa forma só se atinge jogando e ganhando confiança. Hjulmand já compreende bem a Liga e Pedro Gonçalves entrou muito bem na dinâmica exigida ao segundo médio. Quaresma foi uma boa surpresa quando a equipa está sem Diomande e ainda não pode contar com Saint Juste. Geny Catamo voltou bem da CAN. O Sporting está uma máquina bem oleada, mas nada garante que funcione sem a peça principal. É isso que vai decidir-se nos próximos três dias.
O efeito Florentino. Arthur Cabral pode celebrar o facto de, pela primeira vez, ter sido decisivo numa vitória do Benfica – e sim, já o tinha sido com o golo em Salzburgo, no apuramento para a Liga Europa, mas não propriamente na vitória, que já estava assegurada, ainda que por números abaixo do necessário. Ontem, com um golo marcado numa bicicleta todo-o-terreno, a clarividência de dar a Rafa a bola do 2-1 logo a seguir e a intervenção, com a cabeçada à trave da qual saiu a recarga de Otamendi para o terceiro, há muito Cabral na descoberta dos três pontos por parte do Benfica. Mas o maior motivo de interesse do jogo da Reboleira nem foi o contributo do seu avançado. Foi, mais atrás, o efeito Florentino, porque simboliza na perfeição um dos muitos dilemas que por esta altura devia passar – se passa ou não já é outra coisa... – na cabeça de Roger Schmidt. Por onde deve a equipa seguir? Será que os melhores jogadores, vistos no plano individual, farão a melhor equipa? Pode Di María passar 89 minutos ao lado do jogo, porque depois, no minuto que lhe sobra, o resolve com um golpe de génio? E atenção que ontem nem foi o caso, mas já aconteceu. Deve Carreras entrar imediatamente no onze, para acabar com a adaptação de Morato à lateral, porque ataca melhor e o Benfica, desde que funcione bem à frente, não precisará de ter os três pilares atrás a garantir solidez? Precisará Marcos Leonardo de mais minutos para crescer de forma consolidada e deixar de se limitar aos golos sem verdadeiro impacto que tem feito na reta final de jogos ganhos? Mas e Cabral? É agora que começa a mostrar serviço que sai mais cedo? Porque uma coisa é o potencial imaginado e outra, por vezes diferente, é a realidade em que ele se expressa. Marcos Leonardo podia ter tido impacto real num resultado na meia-final com o Estoril e aí falhou a ocasião de que dispôs. E o que é que isto tem que ver com Florentino? É que é inquestionável que o futebol mais seguro e forte em cada duelo de Florentino até permitiu ontem ao Benfica atacar melhor na segunda parte do que o jogo mais macio e vertical de Kokçu na primeira. Mas funcionaria ao contrário? Funcionaria de início, com 0-0, com 0-1, antes dos dois golos a fechar o primeiro tempo? O mundo está cheio de gente que garante contra-factualidades, mas se formos honestos, a posteriori, não podemos senão imaginar. Schmidt tem legitimidade total para, em cima do 4-1 de ontem, dizer que tomou sempre as melhores decisões. Mas se os períodos de apagamento coletivo deixam entender que falta, de facto, alguma coisa a este Benfica se sairmos do plano das individualidades, de todas as trocas imaginadas – Di María ou João Mário por Gouveia, Neres ou até Rollheiser, Cabral por Leonardo, Morato por Carreras – a que me parece mais pressionante é a que promova a entrada de Florentino no onze. Para se ver se, na verdade, também funciona bem de início.
A marca do treinador. Não quero que vejam no que vou escrever a seguir a manifestação do complexo “Velho dos Marretas”, a negação do futebol positivo e uma tentativa de ridicularizar as equipas que procuram construir desde trás, como fazem os oportunistas sempre que nesse processo nasce um golo do adversário. Há mais de 20 anos que defendo a teoria que manda jogar como os grandes para um dia vir a ser como eles (e já não me revejo em tudo o que está neste texto, que é de 1999, da minha fase valdanista – mas mal seria). Uma coisa, porém, me parece evidente: em competição, cada pequeno passo tem de ser sempre bem medido para se evitarem consequências nefastas. Desconfio se vejo um treinador chegar a uma equipa e, ao fim de um par de jogos, começo a ler que há ali toques de “dezerbismo”, como sucedeu com o FC Vizela de Ruben de la Barrera. O “dezerbismo” é uma filosofia tão complicada que, às vezes, nem ao De Zerbi do Brighton sai bem, quanto mais ao de la Barrera com o plantel do FC Vizela. Outro caso difícil de explicar é o do Casa Pia, cujo novo treinador, Pedro Moreira, não só abdicou do 3x4x3 que Filipe Martins ali tão bem tinha oleado, transformando a equipa num modelo de solidez defensiva, como fez desaparecer do onze e até dos convocados vários jogadores que vinham mostrando serviço. Jajá, que se mostrara tão perigoso, por exemplo, na Luz, desapareceu. Varela parece ter passado a sofrer do mesmo mal que levou à queda em desgraça de Vasco Fernandes (a recusa da experiência atrás) e também tem jogado menos. Pablo está longe do onze – ainda que ontem tenha sido titular – e Soma perdeu influência. Desde a vitória por 3-1 em Chaves na estreia do 4x4x2, ontem toscamente transformável em 5x4x1 com o recolhimento do corredor esquerdo, o Casa Pia sofreu 17 golos em cinco jogos e perdeu quatro dessas partidas. Começa a ser altura de pensar na vida.