Uma mão lava a outra
Ronaldo foi apresentado no Al-Nassr por uma mulher e disse que recusou convites. O estádio estava cheio, o balneário sorridente. Os jornalistas disseram “Siiiuuu” e o treinador bateu palmas.
Cristiano Ronaldo era hoje um dos poucos futebolistas capazes de motivar um contrato tão “único” como aquele que o Al Nassr lhe deu para assinar: 500 milhões de euros por dois anos e meio e mais uma data de cláusulas que só se insinuam e não se mostram, pelo que acerca delas só se pode mesmo especular. Seriam uma dezena deles, talvez. E Cristiano Ronaldo era igualmente um dos poucos futebolistas a beneficiar de uma independência financeira e de uma máquina empresarial já montada que lhe permitiria dizer “não” e ganhar na mesma todo esse dinheiro nos próximos anos. Aqui eram ainda menos – talvez uma mão cheia. E, porém, tal como a rapariga na canção do Sérgio Godinho, “ele disse que sim”. Quando o fez, gritou “Abre-te Sésamo” e abriu de par em par a entrada de uma caverna que podia ser a de Ali Baba, pelas riquezas que tinha, mas também a de Platão, tão diferente da que conhecemos era a realidade que ela deixava ver. A recebê-lo e a apresentá-lo uma e outra vez como “o melhor jogador do Mundo” estava uma mulher, a afastar aos olhos do Mundo essa ideia de que as mulheres não gozam de plenos direitos no reino saudita. O próprio Cristiano, antes mesmo de dizer que tinha rejeitado convites de todo o Mundo, da Europa, do Brasil, dos Estados Unidos e até de Portugal, anunciou aos quatros ventos que o Al-Nassr até tinha uma equipa feminina. Os jornalistas presentes, todos vivos, com os dois braços e as duas pernas ainda presos ao corpo, não fizeram perguntas – o que talvez seja a melhor forma de garantir que assim continuam –, mas gritaram várias vezes “Siuuuuu”, em sinal de aprovação daquilo que estava a ser dito. O treinador, Rudi Garcia, riu-se muito e até bateu palmas. Diz que quer fazer com que Cristiano Ronaldo “esteja feliz”. Os adeptos e os jovens jogadores estão em êxtase – e este é real, que ainda recentemente, no Mundial, pude constatar o tipo de devoção por Cristiano Ronaldo nas jovens gerações árabes. E pronto, tudo está bem quando acaba bem. Esta é uma história com final feliz, na qual toda a gente consegue o que quer. A Arábia Saudita limpa um pouco a sua imagem no plano internacional, Cristiano Ronaldo continua rodeado de gente que lhe diz o que ele quer ouvir – e que ainda por cima faz dele o desportista mais bem pago de todos os tempos. Uma mão lava a outra. E viveram felizes para sempre. Ou pelo menos durante dois anos e meio.
Voltar a casa. Lucas Pérez não é Cristiano Ronaldo. Nem pouco mais ou menos. Chegou a valer 20 milhões de euros, em 2016, quando saiu do Deportivo da Corunha e foi jogar para os ingleses do Arsenal, onde fracassou. Na sexta-feira, no regresso da Liga espanhola, fez o golo que valeu o empate (1-1) ao Cádiz CF contra o UD Almería. Em Novembro, antes do Mundial, também tinha marcado nos dois últimos jogos da sua equipa, ao Real Unión, na Taça do Rei, e ao Real Madrid, na Liga. O Cádiz CF está em penúltimo, a lutar para não descer, e nada faria pressupor que o trabalho no clube de Lucas Pérez, 34 anos e mais seis meses de contrato por honrar, estivesse feito. Mas Lucas queria voltar a casa e pagou do seu bolso parte do milhão de euros – diz-se que metade... – que os andaluzes queriam para o deixarem sair. Ao fazê-lo, pôde cumprir o sonho que era voltar jogar com as cores do clube do coração, o Deportivo da Corunha, que está no terceiro escalão, a lutar para voltar ao futebol profissional, onde possa deixar de acumular perdas anuais. É preciso resistir à tentação de glorificar uns e diabolizar outros, de proclamar que uns só pensam em dinheiro e outros mantêm bem vivo o amor à camisola, porque nem há nenhuma vergonha em ser-se profissional nem todo o regresso a casa tem de ser puro. Mas a história é bonita e merece ser acompanhada.
O “mimimi” de Conte. Não há paciência para o “mimimi” de Antonio Conte. Ganhou no Bari, ganhou na Juventus, ganhou no Chelsea e ganhou no Inter e isso chegou, justificadamente, para que lhe colocassem no currículo o rótulo de “treinador vencedor”. Ora, o problema dos rótulos é que são como os carros potentes: gastam muito combustível. Para o manter, Conte tem de continuar a ganhar sempre. E ninguém ganha sempre. Em 2021, no Inter, quando os donos chineses anunciaram que iam desinvestir para reequilibrar as contas afetadas pelo elevado consumo aos 100 quilómetros de um técnico exigente, bateu com a porta. Assinou pelo Tottenham, onde voltou o “mimimi”. Em Fevereiro, depois de uma derrota, exigiu que o clube fizesse uma “avaliação da situação”, porque não lhe apetecia “continuar a perder”. “Mudaram os treinadores, mas os jogadores são os mesmos e os resultados não mudam”, disse. Acabou, mesmo assim, em quarto lugar, em posição de jogar a Liga dos Campeões, mas como a época atual trouxe novos candidatos ao Top 4 – Arsenal, Newcastle United, até o Manchester United... – já voltou o “mimimi”. “Se me satisfizer continuar a fazer este trabalho, fico. Mas se não estiver 100 por cento convencido, vou embora”, decretou. Quem disse que ganhar era coisa fácil?
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