De Enzo a Cristiano
A raiz do caso Enzo, tal como a do exílio de Cristiano na Arábia Saudita, está no berço, no facto de ainda não ter sido entendido que não há jogadores mais importantes do que a equipa.
Enzo Fernández faltou aos primeiros treinos do Benfica em 2023 e gerou uma situação da qual ninguém saiu a ganhar. O clube, então, perde três vezes. Perde no plano desportivo se o afasta do jogo que aí vem, contra o Portimonense, perde no plano financeiro se o castiga e faz saber ao mercado que o seu ativo de topo não é um profissional exemplar e ainda perde legitimidade moral para tratar desrespeitos semelhantes se deixa esta questão passar em claro sem punição. Por muito más que pareçam, ainda assim, as duas primeiras hipóteses são as únicas que reduzem o risco de deixar a doença alastrar como a peste pelo balneário. O jogador até pode olhar para trás e achar que ganhou, seja porque consegue forçar a saída já neste mercado de Janeiro ou porque levou a melhor no capricho que era ir passar o Réveillon a Buenos Aires, mas a verdade é que também ele perde. Não compro as versões postas a circular pelas “fontes próximas do processo”, segundo as quais face a este comportamento o Chelsea já estava a ponderar melhor se avançava ou não pela contratação – são notícias demasiado convenientes na moralidade que pretendem espalhar... –, mas para ver que no fundo também ele perdeu bastaria a Enzo pôr os olhos num jogador que já fez muito mais do que ele e nem por isso se deu bem com os acessos de egomania que deixou emergir na ponta final da carreira. Por muito que queira convencer-se de que os 500 milhões de euros que vai receber por dois anos e meio do Al-Nassr lhe dão um jeitão, a verdade é que Cristiano Ronaldo ainda não deve ter entendido verdadeiramente as razões pelas quais não conseguiu encontrar um clube europeu de topo onde pudesse jogar o seu futebol depois de sair do Manchester United. E não, não foi uma conspiração mundial contra ele. Foi porque não há um treinador responsável no futebol profissional que conta que queira ter no grupo um jogador que acha que é mais importante do que a equipa. Cristiano só se esqueceu disto aos 37 anos, na ponta final de uma carreira de êxito planetário, possivelmente influenciado pela bolha de bajulação permanente em que se deixou hibernar. Enzo tem 21 anos. Não tem atrás dele as Bolas de Ouro do CR7, mas já tem os bajuladores perniciosos. E isso é um sinal dos tempos.
Peixoto, idealistas e pragmatistas. César Peixoto voltou a ser o treinador do FC Paços de Ferreira, dois meses e meio depois de ter sido despedido. O controlo de danos habitual nestas circunstâncias lembrara ontem que o presidente do clube, Paulo Meneses, até tinha elogiado o trabalho do treinador já depois de o ter demitido, na sequência da derrota em Setúbal, para a Taça de Portugal, mas a verdade é que nada neste dossier faz sentido. Se a equipa técnica trabalhava bem e a direção até tinha noção disso, porque saiu? Era preciso “um abanão”, diz agora o presidente. Como assim? E porque volta agora? É porque, mal por mal, não tendo conseguido contratar quem queriam, no clube se lembraram que ainda estão a pagar-lhe? A época do Paços está a esfumar-se na eterna dialética entre idealistas e pragmatistas. Os maledicentes do costume lembrarão, como lembram sempre – e, grosso-modo, nisso têm razão – que treinar uma equipa não é o mesmo que analisar futebol na TV. Para analisar basta ter umas ideias, treinar já é coisa prática. Mas não é só nisso que Peixoto é um idealista. É-o também quando mantém a fé na ideia por trás do trabalho que fez, mesmo que esse trabalho lhe tenha dado zero resultados. E é-o quando se sujeita a voltar ao clube, mesmo admitindo que lhe era muito mais confortável ficar em casa, a receber o salário que lhe é devido. No clube, são pragmatistas. E não é só por aceitarem que se estão a pagar ao treinador mais vale tê-lo a meter mãos à obra ou por, com dois pontos em 14 jornadas, estarem prontos a deitar a toalha ao chão, de modo a pouparem uns cobres e voltarem a pensar no caso para o ano, já na II Liga. É porque vão tendo tantas ideias, umas a seguir às outras, que se percebe que afinal de contas não têm mesmo ideia nenhuma daquilo que querem.
O micro-ondas de Klopp. Jurgen Klopp, o guru do Gegenpressing, do futebol pressionante e intenso, acabou o jogo de ontem, em que o Liverpool FC foi batido pelo Brentford FC (3-1) a queixar-se da arbitragem, de toques e toquezinhos nas bolas paradas. Diz o técnico alemão que apresentou reclamação, mas que falar com os árbitros em Inglaterra é o mesmo que falar com um micro-ondas. “Nenhum dos dois me responde”. Klopp tem piada até quando não tem razão – ainda ontem afirmou que percebia perfeitamente por que razão o Brentford já tinha renovado contrato com o treinador, Thomas Frank, “até 2037, ou lá quando é”. Na verdade, o problema do Liverpool FC não foi a arbitragem. Foi a incapacidade gritante para se opor aos cantos batidos da direita por Mbeumo, o mau momento de Van Dijk e Konaté, a passividade defensiva do meio-campo, a seca de golos de Salah e a tremedeira de Darwin quando lhe toca a ele finalizar. Quando se juntam estes problemas todos, sim, acontece o mesmo que num micro-ondas: dão-se muitas voltas, mas a conversa vai sempre dar ao mesmo.
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