Uma falta de respeito
A maneira como Gérard Lopez deixou cair o Boavista, repetindo o que tinha feito com o Girondins de Bordéus, é uma falta de respeito. E mostra a incapacidade do regulador para cumprir o seu papel.

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O Boavista não entregou nas datas previstas a documentação necessária ao licenciamento para jogar a II Liga, cujo direito a marcar presença ganhou no campo, e resta-lhe agora um par de dias para cumprir os requisitos necessários a entrar na Liga 3 se não quer baixar ainda mais na hierarquia do futebol nacional e, quem sabe, voltar à base, a última divisão do distrital do Porto. Não preciso de invocar a barba branca e de escrever que assistir a esta degradação me dói tanto como já doeu ver desabar o Belenenses, o Vitória FC ou a Académica, outros clubes incontornáveis da minha paixão infanto-juvenil pelo futebol. E não vou sequer puxar da carta dos malefícios dos investidores, que para muitos é o ás de trunfo no debate mas para mim não passa daquele joker que está em todos os baralhos mas só em alguns casos ou jogos tem razão para entrar. O que Gérard Lopez está a fazer ao Boavista – e que, grosso modo, já fez ao Girondins de Bordéus – é acima de tudo uma falta de respeito. Uma falta de respeito ao clube, à sua memória, aos seus adeptos, à pantera empinada que mora à porta do Bessa e acima de tudo àqueles jogadores que deram couro e cabelo para evitar o que já lhes parecia um insulto, que era a queda de um escalão.
Eu ainda sou do tempo do Boavista de Pedroto, com Botelho, Carolino, João Alves, Francisco Mário ou Salvador. Outros, mais novos, lembrarão o Boavista de Manuel José, a equipa que os italianos catalogaram como a “das camisolas esquisitas”, com Alfredo, Tavares, Nelo, Artur, Nuno Gomes, João Pinto ou Jimmy Hasselbaink. Já quase todos por aqui terão visto a equipa de Jaime Pacheco, campeã com Ricardo, Litos, Pedro Emanuel, Sánchez, Rui Bento ou Petit. E certamente viram a equipa de Petit, já sem capacidade para ganhar coisas mas sempre chata para os clubes mais poderosos. Quando falhou a transferência dos 2,5 milhões de euros que regularizariam a situação junto da segurança social, Gérard López faltou ao respeito a todos eles, às memórias que deles temos. Mas faltou ao respeito sobretudo a gente como os miúdos que aguentaram o barco esburacado com que o Boavista começou a época, e que desde logo me permitiu escrever, no início da Liga, que os axadrezados eram fortíssimos candidatos ao último lugar. Ou à dúzia de desenganados que saiu do desemprego para vir ao Bessa fazer um final de temporada esforçado e alimentado a sonhos de retorno, que a experiência de Stuart Baxter quase transformava num sprint final salvador. E a Fary Faye, o presidente da SAD que sempre vimos crente nas boas intenções do investidor e na possibilidade de com ele trabalhar no sentido de recuperar um emblema que ele já só representou depois do auge mas que terá também aprendido a amar.
Dir-me-ão que dois milhões e meio de euros são muito dinheiro. É verdade. Eu não os tenho nem conseguiria que nenhuma instituição me emprestasse sequer uma décima parte. Mas eu não sou investidor de uma SAD que joga numa Liga que é a sétima mais poderosa no ranking da UEFA e tem aspirações a recuperar o sexto lugar perdido para a Eredivisie dos Países Baixos. Lopez é um dos maiores enigmas dos últimos anos do futebol europeu, porque depois de ser dono de duas equipas de Fórmula 1, esteve – com Luís Campos – na origem do crescimento do Lille OSC, ainda que o montante da dívida contraída para comprar o clube o tenha forçado a vender a participação em Dezembro de 2020, a meio da época que os nortenhos fecharam com a conquista de um histórico campeonato e mais ou menos ao mesmo tempo que entrava na SAD do Boavista. A base do Lille OSC campeão, no entanto, foi ele que a criou. Ele e Luís Campos, cuja influência na entrada do hispano-luxemburguês no Boavista terá sido exercida por intermédio de Admar Lopes, o ‘braço-direito’ do atual conselheiro do Paris Saint Germain desde os tempos do AS Mónaco aos do Lille OSC. Admar, que recentemente se mudou para o Vasco da Gama, do Brasil, terá entretanto passado mais para a esfera de Lopez, pois saiu para Bordéus ao fim de uma temporada no Bessa. É que, vendido o Lille OSC, o investidor meteu no Verão de 2021 as fichas todas nos Girondins, que apanhou em dificuldades mas ainda na Ligue 1 francesa.
Desportivamente despromovido à Ligue 2 em 2022, o gigante da Gironda, seis vezes campeão de França e o mesmo clube que um dia sacou Chalana ao Benfica, acabando indiretamente a pagar o fecho do Terceiro Anel do Estádio da Luz, ainda lutou pela subida na primeira época (2022/23), mas foi há precisamente um ano relegado de forma administrativa à quarta divisão, o National 2. Tudo aconteceu quando fracassou uma operação de venda ao Fenway Sports Group (dono do Liverpool FC, por exemplo) e López não quis – ou não pôde... – ir ao bolso para resolver os problemas de licenciamento junto da Liga Francesa. E isto levanta três tipos de questões. Uma, que neste momento já nos interessa pouco a nós, portugueses, prende-se com a atual situação financeira de Lopez. Passa por dificuldades desde que começaram a sair notícias acerca da mudança do fulcro dos seus investimentos para a criptomoeda? Mas muito mais interessante é a segunda dúvida, que se prende com o que quer o dono da SAD fazer com os investimentos que tem na área do futebol. No fundo, para que lhe serve continuar a ostentar a bandeira de “investidor em futebol” se os seus dois clubes caírem numa dimensão amadora? Carmelo Fraile, o representante de Lopez na SAD boavisteira, já justificou a queda do Boavista com o “cancro terminal” a que corresponde a dívida de 156 milhões de euros que a empresa carrega, um terço da qual vem do clube por causa do estádio. Isto já interessará mais, sobretudo aos boavisteiros, nomeadamente para se perceber que perspetivas haverá de recuperação e se o problema é exclusivo do emblema deles.
Mas fundamental mesmo é encararmos a terceira questão, que não se prende já com o licenciamento das SAD para jogarem competições profissionais, mas sim com o licenciamento dos investidores que querem pegar nas SAD. O futebol profissional em Portugal é já um setor demasiado sério da nossa economia para ser encarado com a total ligeireza com que o tem sido. Continuamos a olhar para casos como este – ou como o do Belenenses, do Vitória FC, mas também do Beira Mar ou do CD Aves, para citar só os que me ocorrem assim de repente –, a abanar a cabeça e a encolher os ombros enquanto culpamos o “futebol moderno”. Mas a culpa não é do futebol moderno. A culpa não é da necessidade de fazer crescer o investimento para acompanhar o aumento da competitividade ou da retribuição paga a jogadores de topo. A culpa é da incapacidade do regulador para evitar que o setor seja constantemente invadido por gente sem condições para nele andar.
Nota: O Último Passe vai estar aqui de segunda a sexta-feira (excetuando feriados) enquanto houver equipas portuguesas no Mundial de clubes. No primeiro dia útil após o derradeiro Último Passe de 2024/25 sairá a primeira edição dos Reis da Europa, que depois seguirão a correnteza normal, com todos os campeões nacionais desta época, da Albânia à Ucrânia, numa periodicidade que eu gostava que fosse diária mas que ainda não sei se conseguirei manter tão frequente. A 4 de Agosto, com o início de 2025/26, voltará o Último Passe, mas em versão vespertina (às 19h) e apenas para subscritores Premium. A partir daí, mas logo pela manhã, terei para vós (para todos, que será conteúdo gratuito) a Entrelinhas diária, uma leitura de cinco minutos com tudo aquilo que precisam de saber para manter as conversas sobre futebol nas pausas para café no trabalho.
Boa tarde, António.
No seguimento de vários textos sobre este tema, refere o conceito "o regulador". Refere-se à Liga, composta e gerida por estes, a qual nunca demonstrou vontade e/ou capacidade? Ou a um órgão externo, como a Autoridade da Concorrência, tendo para tal que ser decretada pelo Governo? Neste último caso, não seria visto como uma interferência governamental na livre organização do Futebol? Ou outra solução?
Obrigado.