Celebração da diversidade
A Alemanha de Wirtz e Musiala está para a de Thon e Littbarski como os fatos às bolinhas multi-coloridos ou a coreografia caótica da cerimónia de abertura estiveram para a festa maquinal de 1988.
Podemos olhar para o jogo inaugural do Europeu e ver ali a tradicional eficácia alemã, os 101 passes certos em 102 tentados por Toni Kroos ou até o pleno (32 em 32) de Jamal Musiala. Mas essa não seria a forma correta de ver o jogo. Ou pelo menos não seria a forma completa de o fazer. Porque a Alemanha que ontem goleou uma Escócia demasiado fraca para estas coisas das fases finais (5-1) foi mais do que eficácia maquinal, precisão industrial. A Alemanha de 2024 pode não ser uma das principais candidatas a ganhar a final ou até a chegar lá – e já vos disse que o pleno de pontos que previsivelmente fará na primeira fase pode fazer crescer a onda de otimismo e carregar a equipa para um patamar que ela não justificou até hoje e que muito dificilmente justificará quando enfrentar seleções que a desafiem lá atrás. Vamos ver... Mas, dizia, a Alemanha de 2024 até pode não ser uma das principais candidatas a ganhar a final ou a chegar lá, mas traz uma equipa muito divertida, quase que em sintonia com a celebração da diversidade que foi a festa de abertura. Wirtz e Musiala estão para Thon e Littbarski como aqueles fatos multicoloridos às bolinhas ontem usados pelos bailarinos numa coreografia aparentemente caótica estariam para o registo formal da hiper-organizada festa de abertura de 1988, em Düsseldorf, na qual todos os figurantes foram, direitos e certinhos, para os sítios certos, os sítios que lhes permitissem formar os caracteres para se construir a expressão “Euro 88”. E a Alemanha atual é muito mais excitante, já não se limita a refletir o “They Walked in Line” dos Joy Division. O que se impõe no jogo de Musiala e Wirtz não é o facto de o primeiro ter acertado todos os passes que tentou, de o segundo ter feito o golo de abertura do torneio, desbloqueando o jogo bem cedo, mas sim o de nunca se saber bem onde eles vão aparecer. Há dias, Gündogan, o capitão desta Alemanha e o terceiro componente do trio de apoio ao ponta-de-lança de ligação, que é Havertz, negava essa ideia segundo a qual teriam de ser os miúdos, 21 anos cada um, a adaptar-se ao que ele, veterano de 33 anos, já fazia na equipa. A antiguidade até pode ser um posto, mas o que ela traz é inteligência e uma melhor capacidade de leitura de jogo, pelo que é Gündogan que tem de perceber onde se encaixa de maneira a que Wirtz e Musiala possam trazer aquilo que têm para dar, diversão e diversidade. Gündogan tem boa chegada, mas não a perde se a condicionar à liberdade de movimentação de Wirtz ou ao tempo diferente que demoram as ações de Musiala, consoante ele decida jogar mais simples ou arrancar em um para um. Esta Alemanha já chocou os tradicionalistas por causa do seu segundo equipamento (cor-de-rosa), mas podia bem jogar com camisolas às bolinhas de várias cores, porque é essa imprevisibilidade que a faz crescer nas nossas apreciações e na bolsa de equipas capazes de ganhar o Europeu.
O segredo (evidente) da Alemanha. A Escócia não tem vida para estas coisas das fases finais e só uma avaliação muito otimista poderia vê-la a fazer carreira na competição, mas aquilo que mostrou ontem foi demasiado pobre e começou na definição do plano de jogo. Em posse, a Alemanha fazia uma coisa muito simples: baixava Kroos para a esquerda de Tah, fazendo uma saída a três, com Rüdiger na meia-direita. A Escócia opunha o ponta-de-lança, Adams, e não é preciso um curso de geometria descritiva para se perceber que isto resultava sempre, em toda e qualquer situação, em bolas redondas e descobertas no pé direito de Kroos. Depois, uns metros atrás, os escoceses tinham uma linha de quatro homens, com um comportamento parecido ao que teve, por exemplo, a missão de observação da ONU durante os massacres do Ruanda. McGuinn, McTominay, McGregor e Christie só viam mesmo, ficavam expectantes, de frente para a bola, mas demasiado longe para poderem interferir e impedir Kroos de achar um dos homens que se moviam nas costas desta linha – e eles eram quatro, os dois laterais, mas também Andrich e Gündogan, que muitas vezes baixava em apoio para ir ali servir de ponto de circulação. A disposição tática das duas equipas no início de organização ofensiva da Alemanha era um convite aos passes progressivos, uns atrás dos outros, a descobrir espaços entre linhas, e um primeiro sinal do desastre que aguardava a Escócia. Walter Smith corrigiu aos 2-0, mandou Christie subir para a linha de pressão de Adams, de maneira a condicionar um pouco mais o jogo alemão e a entrada da bola em Kroos, mas pouco depois ficou com dez e já nem houve mais conversa, quanto mais jogo. Ainda assim, é curioso que nos segundos 45 minutos, com dez homens e a mesma incapacidade para contrariar a pressão alemã na saída de bola feita por centrais que não sabem passa-la, mas a defender mais atrás, a Escócia tenha dado mais réplica do que nos primeiros 45, em que devia discutir o desafio.
Olhos no Espanha-Croácia. Vem aí o primeiro dia com três jogos. Tenho curiosidade com o Hungria-Suíça, porque há crescimento nesta equipa húngara e quebra que me parece difícil de evitar, na geração Xhaka-Shaqiri que marcou os últimos anos do jogo suíço. Quero ver se esta Albânia de rigor atrás e velocidade na frente consegue contrariar a Itália campeã e como é que Spalletti pode ter dado a volta a uma equipa que também chega com ideias de defender melhor do que ataca mas que o faz depois de um ano promissor para os seus clubes na UEFA. Mas o jogo do dia é claramente o Espanha-Croácia (17h, RTP1 e Sport TV). É Modric contra Pedri, é a capacidade de construção da primeira linha croata (Sutalo, Gvardiol...) contra toda a explosividade da linha atacate espanhola (Nico Williams, Lamine Yamal...). É o jogo seguro de Brozovic contra o de Rodri, um já exilado na Arábia Saudita, o outro cansado da época no Manchester City. É o primeiro confronto entre duas grandes equipas neste Europeu e, como é algo raro na primeira fase, é de aproveitar.
Entrelinhas
Multicultural Hungary give telling contrast to Orban’s creed, artigo de Tom Mortimer, no The Guardian, acerca da diversidade encontrada na seleção húngara e a o seu contraste com a sociedade desejada por Viktor Orban.
Yakin face a um mur, reportagem de Sébastien Buron, no L’Équipe, acerca da pressão que cresce em cima de Murat Yakin, o selecionador suíço.
Multinazionale Albania: dalla colonia in A alla... Corea, le aquile fanno il giro del mondo, artigo de Andrea Ramazzotti, na Gazzetta dello Sport, sobre a seleção albanesa, aparentemente sem versão online.
Secret algorithm finds global talent for Albania, artigo de Sam Dean, sobre a base de dados que foi usada pela equipa técnica albanesa para enriquecer o plantel, no The Telegraph.
Italia, la vieja autoridade resquebrajada sin gol, sin PlayStation y bajo el espíritu de los All Blacks, reportagem de Inma Lidón, no El Mundo, sobre as restrições impostas aos jogadores italianos na concentração.
Pedri, la résurrection, reportagem de Romain Lafont, no L’Équipe, sobre o regresso em pleno de Pedri depois de uma época cheia de lesões.
Halilovic: “Cuando te llaman el nuevo Modric o el nuevo Messi todo va bien hasta que no eres como ellos”, entrevista de Abraham P. Romero a Alen Halilovic, no El Mundo, sobre as expectativas e a realidade de um novo talento croata.
He’s one of our own: how and why Germany has taken Kane to its heart, reportagem de Christian Falk, no The Guardian, sobre a adoção de Kane por parte dos adeptos alemães.
How Southgate got fire back after Qatar for final tilt at glory with England, de Jason Burt, no The Telegraph, conta a história do processo de reflexão que levou o selecionador inglês a ficar no vargo por mais dois anos, após o último Mundial.
Volver a la infancia, artigo de Jorge Valdano, sobre o significado dos grandes torneios, com uma emocionante passagem pelo “pacto” que fez com a mãe no início da sua aventura como futebolista, no El Pais.
Medio siglo de la Naranja Mecánica, artigo de LJM, acerca do cinquentenário do primeiro jogo da revolucionária Holanda no Mundial de 1974, no El Pais.