Um presente de Guardiola
A renovação de Guardiola, pelo menos por mais um ano, facilita a vida a Hugo Viana logo na chegada ao Manchester City, Ganha-lhe tempo. Mas ao mesmo tempo condiciona-lhe os passos que se seguem.
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Os portugueses andam de tal maneira embrenhados a seguir a passagem de Rúben Amorim do Sporting para o Manchester United que deixaram para segundo plano os contornos mais complexos que rodeiam a transferência de Hugo Viana para o Manchester City. E o diretor desportivo, que a partir do Verão vai ser o primeiro corpo estranho na estrutura de influência catalã que manda no clube do dinheiro do Abu Dhabi, teve esta semana uma vitória, nem que seja por procuração, que foi a anunciada renovação do contrato de Pep Guardiola por mais uma época, com outra de opção. O que Hugo Viana ganhou, mesmo acompanhando as coisas à distância, do seu gabinete lisboeta, foi tempo. E, por várias razões, que vão desde o envelhecimento e da concomitante necessidade de rejuvenescimento do plantel à gestão que terá de fazer do caso das mais de 100 infrações aos regulamentos financeiros da Premier League de que o clube é acusado, o tempo, ali, é essencial. Mesmo que depois tenha de lidar com uma sucessão mais armadilhada.
O trabalho que espera Hugo Viana quando ocupar, de facto, a cadeira que tem sido do basco Txiki Beguiristain, ex-colega de Guardiola no Barça, e começar a trabalhar com Ferran Soriano, o catalão que é CEO do City Football Group, na definição do plantel para 2025/26 tem tudo para ser avassalador. O plantel do City tem neste momento nove trintões – Ederson, Ortega, Carson, Walker, Stones, De Bruyne, Bernardo Silva, Kovacic e Gündogan – e mais dois que já o serão quando começar a nova época – Aké e Akanji. Três destes onze (Carson, Gündogan e De Bruyne) acabam contrato no final desta época. Outros cinco (Ortega, Walker, Stones, Ederson e Bernardo Silva) veem extinto o vínculo em 2026. Seja como for, a tarefa que espera Viana é a de começar já a preparar o futuro. Ainda que uma eventual condenação no processo que opõe o clube à Premier League possa redundar na perda de pontos (versão light), na proibição de contratar novos jogadores (problema mais sério) ou até na despromoção administrativa (o verdadeiro problema), dinheiro não há-de faltar-lhe. O fair-play financeiro também não dá ares de ser um problema – até porque o City deu lucro no último exercício. Daí que se torne indispensável o resto da equação: uma direção, a definição de um caminho, que fica logo mais fácil se ainda lá estiver o mais obsessivo dos treinadores do futebol atual, mas que ao mesmo tempo condiciona o que tiver de suceder quando ele se for embora.
A renovação de Pep Guardiola facilita a entrada em funções do diretor desportivo português, que ganha logo uma força diferente, por exemplo, nas renovações de contratos aos jogadores da lista acima mencionada que quiser manter ou na capacidade para convencer eventuais substitutos a escolherem o City. Quem não quer trabalhar com o melhor treinador do Mundo na atualidade? Mas também o condiciona na definição de um futuro do qual, inevitavelmente, Guardiola deixará um dia de fazer parte. Seja em 2026 ou em 2027. Quando Guardiola chegou ao City, em 2016, assustou-se logo com as sugestões de que podia vir a gozar ali um período tão longo como os 21 anos e meio de Arsène Wenger no Arsenal ou, pior, os 26 anos e meio de Alex Ferguson no Manchester United. Estamos a falar de alguém que encara a profissão de uma forma de tal maneira obsessiva que, depois de quatro épocas no FC Barcelona, sentiu a necessidade de tirar um ano sabático em Nova Iorque, antes de abraçar um novo desafio, no Bayern Munique. Mas também de alguém que, incógnito, chegou a matar as saudades do jogo oferecendo-se para apitar os desafios dos filhos num torneio escolar indoor – onde, reza a lenda, acabou a dar indicações de posicionamento e movimentações aos jovens jogadores da equipa adversária, para irritação de todos os pais presentes. Ao decidir continuar no City por mais um ano – pelo menos, que não sendo a renovação oficial não há detalhes sobre a tal época de opção e sobre quem poderá vir a ativá-la... –, Guardiola mostra que não vira as costas a um período de dificuldades. E não é por o City estar numa sequência de quatro derrotas seguidas, que isso a equipa ultrapassará, ganhe ou perca esta Liga. É por este ser um momento de viragem, se calhar só comparável ao que ele viveu ali em 2017, um ano depois de ter chegado a Manchester.
Foi nesse Verão depois de ter vivido a sua primeira temporada no City que Guardiola começou verdadeiramente a desenhar a que viria a ser a equipa internamente dominadora e vencedora de seis das sete edições que se seguiram da Premier League. Houve tiros ao lado, como é evidente, mas citando apenas os que vieram a ter muita importância, depois de Stones e Gündogan em 2016, chegaram em 2017 Ederson, Bernardo Silva e Kyle Walker. E a seguir foi só fazer retoques: Mahrez em 2018, Cancelo e Rodri em 2019, Rúben Dias e Aké em 2020, Grealish e Álvarez em 2021, Haaland e Akanji em 2022... As apostas em Gvardiol, Doku e até Matheus Nunes, em 2023, e a deste ano em Savinho já demonstram alguma vontade de olhar para o futuro, mas o próximo Verão – e em certa medida até já o próximo mercado de Janeiro, onde haverá a tentação de encontrar um remendo imediato para Rodri, lesionado até final da época – será crucial. Hugo Viana sabe antecipadamente que o sucesso da sua tarefa depende de vir a fazer boas escolhas. E percebeu, na ligação quase telepática que manteve com Rúben Amorim nestes quatro anos e meio em que os dois coincidiram no Sporting, que as escolhas são melhores ou piores não tanto em função da qualidade dos jogadores – que bons jogadores há-os por aí às carradas e ninguém imagina o City a escolher os maus – mas sim da sua capacidade para satisfazer as necessidades muito específicas postas na mesa pelos planos que são definidos pelo treinador.
Ao saber que vai começar a sua primeira temporada no City com Guardiola – que, estou convencido, era aquilo que ele queria –, Viana pode dar-se ao luxo de entrar no papel com mais souplesse. Mas depois, quando chegar o dia de encontrar o substituto para o catalão, em princípio após o Mundial de 2026 – o que liberta uma série de potenciais sucessores e abre a Pep várias portas interessantes – já terá a escolha condicionada a alguém que veja o jogo como ele, sob risco de inutilizar boa parte das opções que os dois vão agora fazer para o ataque a 2025/26. E, ainda que muito imitado, o catalão continua a ser único na forma de ver este jogo.