Um Leão na autoestrada
A arrancada de Rafael Leão para o golo de Giroud é o exemplo daquilo que o atacante do Milan pode fazer por qualquer equipa. E faz regressar a questão fraturante: como é que ele não joga na seleção?
Imaginem um leão na autoestrada. O pânico que a coisa criaria entre os circulantes, ver uma besta de força capaz de os despedaçar a correr livremente entre eles. Foi o que sentiu a equipa do SSC Nápoles, ontem, quando Rafael Leão pegou na bola, ainda bem dentro do meio-campo do Milan, e arrancou com ela. Superou N’Dombelé quando meteu a primeira mudança, acelerou no espaço livre e bateu Di Lorenzo com uma finta para dentro. N’Dombelé continuava atrás dele, a apertar-lhe a traseira no retrovisor, e pela frente aparecia-lhe Rrahmani. Solução? É meter uma mudança abaixo e ir buscar mais uns cavalos ao motor para voltar a mudar de velocidade. E eis que surge novo problema: a linha de fundo aproximava-se a toda a brida, o guarda-redes Meret fechava-lhe o ângulo para meter a bola na baliza. Valeu a Leão que Giroud tinha estado a acompanhar tudo e se disponibilizava pelo meio. Deu-lhe a bola com subtileza, de canhota, para uma finalização fácil. Se ainda não viu, pode ver o lance aqui e, se gosta de coincidências, pode compará-lo com esta arrancada de Ruud Gullit, em 1988, em direção à mesma baliza do mesmo estádio, que na altura ainda se chamava San Paolo porque Diego Maradona estava em campo. O holandês foi naquela tarde o melhor em campo de um jogo que o Milan ganhou por 3-2, arrancando o scudetto das mãos dos napolitanos, o português recebeu ontem o prémio de homem do jogo num empate que chegou aos rossoneri para se qualificarem para a meia-final da Liga dos Campeões, depois de já ter bisado ali nos 4-0 para a Serie A, no início do mês, e de ter assistido Bennacer no 1-0 da primeira mão, em San Siro. Rafael Leão é neste momento um dos atacantes mais diferenciadores do futebol europeu, com a capacidade técnica a servir na perfeição a aceleração demolidora que tem nas pernas, o que me leva a repetir aquilo que já digo há pelo menos um ano: o sucesso da seleção nacional depende da capacidade para o integrar no plano de jogo. Fernando Santos não foi capaz de o fazer nem na última Liga das Nações nem na fase final do Mundial, mantendo-o sempre como alternativa a sair do banco. Roberto Martínez também começou com ele de parte, dando-lhe um total de 40 minutos nos jogos contra o Liechtenstein e o Luxemburgo com que começou a comissão à frente da equipa nacional. Leão é sobretudo um jogador de grandes espaços, mais letal em ataque rápido ou em contra-ataque do que numa equipa que tem de ter a bola e a iniciativa em permanência, que passa boa parte dos jogos metida dentro do meio-campo adversário, casos em que até se lhe notam as deficiências no que respeita a trabalho tático ou à solidariedade defensiva? Pode até ser esse o caso. No Mundial transpirou que Santos o queria a sair mais da esquerda para dentro e não tão aberto e que terá sido essa a razão para a sua escassa utilização – somou um total de 87 minutos nos cinco jogos, sempre a sair do banco. Mas o potencial que ele mostra semana após semana pelo Milan, que também não é sempre uma equipa forçada a jogar tão atrás como o fez ontem, não deixa espaço para segundas interpretações. A dimensão dos dois não é ainda comparável, mas fazer um onze de Portugal sem Leão neste momento é quase como fazer um onze da Holanda sem Gullit em 1988. Em suma, uma patetice.
De Courtois a Rodrygo. A desilusão do Chelsea, que ficou ontem com a certeza de uma coisa da qual pelo menos já suspeitaria – a de que, na melhor das hipóteses, voltará à Champions em Setembro de 2024 –, foi um pouco a afirmação do poder do Real Madrid, que repetiu na segunda mão, em Stamford Bridge, o resultado da primeira, no Bernabéu. Ganhou o gigante espanhol por 2-0, 4-0 no somatório dos dois jogos, a provar a sua própria magnificência nesta competição de que é titular, mas esteve ainda assim à mercê de uma equipa do Chelsea que a dada altura, contra todas as expectativas, se agigantou. Aí valeu aquilo a que Frank Lampard chamou no final a capacidade para ser “mais clínico”. Este Real Madrid tem falhas, uma delas foi ontem a relativa inadequação de Camavinga à posição de defesa-esquerdo – safa-se, mas a jogar ali não é digno de uma final de Champions –, só que as compensa com momentos de heroísmo, como o protagonizado por Courtois mesmo a acabar a primeira parte. Cucurella teve a bola à frente do seu pé esquerdo e uma baliza enorme à mercê para a meter lá dentro. Só que naquele momento Courtois foi mais gigantesco ainda. Disparou como uma flecha em direção à ameaça, aumentou o volume do corpo sabe-se lá como, abrindo braços e pernas, e tornou impossível uma tarefa que parecia simples. Não foi golo, o jogo foi para o intervalo empatado a zero, permitindo que na segunda parte aparecesse Rodrygo. O primeiro golo, o que matou a eliminatória, foi outro compêndio de heroísmo clínico. Começou na arrancada do brasileiro pela direita, depois de ganhar espaço atrás da última linha defensiva. Continuou num passe atrasado, ao qual não chegou Benzema, mas sim Vinicius Jr. E Vini fez o contrário de Cucurella, mais ou menos no mesmo sítio, na mesma baliza. Esperou, deixou o tempo passar por ele. Aguardou até que, em quatro para seis na área – três para seis, na verdade, que o sprint de Benzema para chegar à bola o deixara fora da jogada –, Rodrygo caminhasse até à frente da baliza. E só nessa altura soltou a bola, para a finalização do compatriota. Ser clínico, como diz Lampard, é apenas uma coisa. É ter bons jogadores.
Schmidt, as férias e as seleções. Roger Schmidt sofre do mesmo mal que todos os que estão de fora a ver o Benfica a cair: quer encontrar a razão primeira e enche-se de certezas absolutas na busca dessa pedra filosofal dos analistas. Como a fação popularuchazinha já decretou que o erro foi ter dado mini-férias aos jogadores não convocados para as seleções na última pausa, a pergunta lá saiu. E Schmidt, que até tinha tido a vantagem de contrariar a doutrina vigente quando recusou a rotatividade nos primeiros meses de época, disso retirando resultados, veio agora agarrar-se a ela quando afirmou que as mini-férias tiveram efeito, sim, mas “um efeito muito positivo nos jogadores, que tiveram descanso”. Afinal, Schmidt também quer encontrar a tal verdade absoluta e também a busca na doutrina. “O problema foram os jogadores que estiveram nas seleções nacionais”, explicou. “Porque alguns não jogaram, estiveram dez ou 12 dias fora, com muitas viagens, quase sem treinar. Para estes é difícil manter o ritmo e a forma”, concretizou. Ora vamos lá a ver. No caso do Benfica, Vlachodimos, Aursnes, Bah, Otamendi e António Silva fizeram pelo menos 90 minutos – pelo que não são problema. Treinaram e até jogaram, mesmo tendo em conta que Otamendi foi à América do Sul. Musa era suplente e suplente continuou a ser, pelo que o problema foram Gonçalo Ramos e João Mário, que não jogaram muito tempo e foram ao Luxemburgo. A sério? Sugiro mesmo que no Seixal se ponha uma réplica do cachimbo de Magritte, mas com um gigantesco ponto de interrogação e uma legenda a condizer: “O problema não é o problema”.
O jogador que está a perseguir o Leão é o Ndombele e não o Osimhen.
Já no outro ano um senhor dizia que foi o covid que lhe tirou o campeonato!