Um holandês e a síndrome de Estocolmo
O que Ten Hag perdeu não foi a esperança de elevar o United a um patamar de excelência. Foi toda e qualquer conexão com a realidade. É desta situação que os responsáveis estão voluntariamente reféns.
Palavras: 1503. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu canal de Telegram).
Parece uma contradição face às vantagens da estabilidade, que defendi na Entrelinhas desta semana (a ler aqui), mas já não há condições para o Manchester United manter Erik Ten Hag no cargo de treinador por mais tempo e não me ocorre mais do que uma razão para que isso venha sucedendo semana após semana: os decisores, muitos deles já contratados pela nova administração, a da Ineos de Jim Radcliffe, estarão afetados por uma espécie de síndrome de Estocolmo, um distúrbio emocional que leva os reféns a sentirem empatia pelos raptores. A cada semana que passa, o United vai-se afundando mais na desorientação e acumulando resultados que só são superados na sua patetice pelas declarações proferidas pelo treinador holandês para os justificar. Ten Hag está já bem dentro da sua terceira temporada à frente do United, teve sempre plenos poderes para definir o plantel, já gastou mais de 650 milhões de euros desde que chegou a Old Trafford e a equipa joga cada vez menos, como se viu nos 0-3 que ontem encaixou em casa, com o Tottenham. Ouvir o treinador dizer que esta é uma equipa que ainda precisa de tempo para crescer é uma das maiores tolices de que há memória no futebol, a ponto de ser legítimo defender que a pior coisa que pode acontecer ao clube é vir a ganhar ao FC Porto, já na quinta-feira, e ao Aston Villa, no domingo que vem, nos dois jogos que faltam até à pausa FIFA de Outubro e que, tudo indica, voltarão a ser decisivos para o treinador.
Hoje há quem defenda já que o grande problema do Manchester United foi ter ganho ao City na final da Taça de Inglaterra, em Maio. Mais ainda, que o maior problema foram os poucos centímetros fora-de-jogo de Haji Wright, no último minuto do prolongamento da meia-final da mesma competição, antes de o norte-americano ter dado a Victor Torp o que seria o golo da vitória do Coventry City, por 4-3, num desafio em que, a 20 minutos do fim, o United ganhava por 3-0. Não tivesse o VAR salvo o United nessa tarde, abrindo caminho para a final, e Erik Ten Hag provavelmente já não estaria à frente da equipa nem teria convencido a nova administração a aprofundar ainda mais a ‘ajacização’ do clube (tema que abordei aqui), com as contratações de mais jogadores da sua esfera de influência. A Ineos comprou uma parcela minoritária do clube aos norte-americanos Glazer, mas garantiu na mesma o domínio das operações de construção e gestão da equipa, tendo para tal montado ali uma estrutura muito sabedora... e cara. Do Manchester City chegou o novo CEO, Omar Berrada, que até tinha estado quase uma década no FC Barcelona. Do Southampton FC, para diretor técnico, veio Jason Wilcox, também um funcionário de longa data do grupo City antes de ter rumado a sul. E do Newcastle United surgiu Dan Ashworth, para ser nomeado diretor de futebol. Tal como faz reiteradamente no mercado de jogadores, sem olhar a despesas, o Manchester United escolheu quem queria para liderar a gestão. E agora está toda a gente prisioneira de um processo de degradação em curso, sem capacidade para entender que na destruição de um clube tão grande como aquele não há um ponto sem retorno a partir do qual não vale a pena inverter o sentido.
Estou convencido de que Ten Hag é um excelente treinador. Por ele fala o trabalho que fez no Ajax, onde liderou uma geração à meia-final da Liga dos Campeões – e ficou a um minuto de uma final que, no atual contexto do futebol europeu, teria sido histórica. Não faço parte desse grupo de portugueses que lhe guarda rancor por ele ter sido fundamental no afastamento de Cristiano Ronaldo, ainda que me pareça que, em termos pessoais, nenhum dos dois se portou bem no processo. Não é isso que importa, ainda assim... O que interessa é que até Ole Gunnar Solskjaer, o treinador que tinha jogado com Cristiano e que fez muita força para o seu regresso, admitiu na semana passada que a contratação do português acabou por se revelar “um erro”. É que o futebol nem sempre é o que parece. Ronaldo ainda fez 24 golos nesse ano de retorno a Old Trafford, mostrou um rendimento individual bastante aceitável, mas o técnico acabou por ser despedido a meio do percurso e diz agora que foi por causa da “dinâmica de balneário” que a presença do CR7 foi alterar. Essa mesma dinâmica que, provavelmente, Ten Hag não quis manter, razão pela qual forçou o exílio saudita do ídolo das bancadas em 2022. E, quando o fez, devia saber que estava a arriscar tudo, algo que nunca se deve fazer a não ser com um elevado grau de certeza de que as coisas vão correr bem.
Para entender esta parte da história, talvez seja bom ouvirem o episódio dedicado a Ten Hag no excelente podcast que é “Heroes & Humans of Football”, de Simon Kuper e Mehreen Khan (está aqui o link). A personalidade de Ten Hag, obsessiva, perfecionista mas ao mesmo tempo sempre cheia de si próprio e das suas razões infalíveis, mesmo ante as mais evidentes provas de fracasso, terá sido fundamental para o levar à convicção absoluta de que estava – e ainda está – no caminho certo. Pois bem, haja alguém que lhe diga que já se perdeu há muito. E que o caminho pelo qual ele está a levar a equipa não conduzirá a nenhum local de que possa um dia orgulhar-se, como se orgulhou do percurso que fez com aquela geração de jogadores do Ajax que, em boa parte, agora o acompanha sem resultados no Manchester United. Ten Hag chegou a Old Trafford em Julho de 2022, deixou logo 170 milhões de euros na Holanda, para ir buscar Antony, Lisandro Martínez e Malacia – aos quais juntou mais 70 por Casemiro – e até fez uma primeira época muito aceitável, com vitória na Taça da Liga, presença na final da Taça de Inglaterra (perdida com o City) e qualificação para a Liga dos Campeões, melhorando o sexto lugar de Ralf Rangnick (foi terceiro) e reduzindo 21 pontos à distância abismal a que a equipa tinha ficado do primeiro. Visto isto, era deixá-lo trabalhar. A segunda época, porém, foi má: gastou mais 200 milhões de euros, 50 dos quais noutro antigo pupilo do Ajax (Onana), mas não só deixou a Champions na fase de grupos como acabou a Premier League em oitavo lugar, outra vez a mais de 30 pontos do campeão. Foi a vitória sobre o City, na final da Taça de Inglaterra, a justificar a continuidade de um treinador que quase toda a gente considerava um autêntico “dead man walking”.
Mais 214 milhões de euros depois, 60 dos quais noutros dois elementos da equipa do Ajax de 2019 (De Ligt e Mazraoui) e 40 no seu compatriota Zirkzee, Ten Hag já instigava alguma vergonha alheia quando respondia com títulos a quem o contestava. “Além do City, ninguém ganhou tanto como nós nos últimos anos”, afirmava. Aí, pelo menos, tinha a razão dos factos do seu lado. Desde que ele chegou a Manchester, o City ganhou duas Premier Leagues, uma FA Cup, uma Champions, uma Supertaça Europeia, uma Supertaça inglesa e um Mundial de clube. E, além do United, que venceu a FA Cup e a Taça da Liga, ninguém conquistou mais do que um troféu: o Liverpool FC guardou uma Taça da Liga, o Arsenal uma Supertaça e o West Ham uma Liga Conferência. Agora, porém, quando a equipa segue em 12º lugar na Liga, tão perto da linha de água como da qualificação europeia (quatro pontos para cada lado), com uma diferença de golos negativa e tendo ganho apenas três dos nove jogos da temporada (um deles ao Barnsley, do terceiro escalão, na Taça da Liga), quando um desaire no Dragão, quinta-feira, pode começar a complicar bastante a vida na Liga Europa, Ten Hag vir dizer que “a equipa precisa de tempo” e que está a “construir o futuro” é abusar da paciência de quem o ouve. Sou, serei quase sempre, defensor da estabilidade no trabalho dos treinadores. Acho, já disse antes, que Ten Hag é um bom treinador. Mas há casos em que mesmo os bons são incapazes de ver a realidade à frente dos olhos. E a realidade é que nada que o neerlandês faça mudará o facto de esta já ser, para ele, uma guerra perdida. Que ele não o entenda, tem a ver com a confiança inabalável que tem no seu próprio trabalho. Que quem está acima não o veja, já é um caso mais ou menos evidente de síndrome de Estocolmo.
O Manchester United precisa de um rumo, o treinador tem estado muito mal (não por Cristiano Ronaldo), mas o principal problema são os dirigentes e os proprietários do clube. A construção do plantel por Ten Hag e o Manchester United é pior que Schmidt no Benfica no Benfica.