Trincão apanhou o viaduto
O avançado do Sporting vinha-se perdendo num futebol circular, uma rotunda após outra, em busca de dribles muitas vezes inconsequentes. Ontem apanhou o viaduto e marcou três golos em cinco toques.
Às vezes, parece que Trincão joga um jogo diferente de todos os outros que estão em campo. A bola cola-se-lhe aos pés e ninguém lha tira, porque ele tem essa habilidade para a levar com ele para todo o lado, pequeno passo a pequeno passo, em trajetórias imprevisíveis, que não seguem por onde toda a gente acharia mais recomendável. O problema é que são muitas as vezes em que essas trajetórias o afastam do golo, como são bastantes aquelas em que o fazem esbarrar na sua própria falta de dimensão física, de potência muscular, de explosão, de resistência à carga legal. E o virtuosismo acaba por lhe servir de pouco: ele esconde a bola de toda a gente até cair, até se perder em mais uma rotunda que voluntariamente põe entre ele e o objetivo. Liderar o talento inquestionável de Trincão há-de ser um desafio gigantesco. O que se lhe inclui no plano? Reforço muscular para o encher de músculos e lhe aumentar os 70 quilos que tem para 1,84m de altura e dessa forma o tornar mais resistente? E se com isso ele perde o que o distingue, que é o tal virtuosismo? O que se lhe diz? Que está bem assim? Que tem de mudar tudo? Que tem de jogar mais simples? Mas e se ele entra em crise de confiança? Como se diz a alguém por quem o Barça pagou mais de 30 milhões de euros enquanto ele era ainda um adolescente, a alguém que já jogou na seleção nacional, que afinal o caminho certo não era aquele que ele vinha seguindo? E atenção: o problema não é ter de o contrariar. O problema é se, sendo contrariado, ele acaba por não ser uma coisa nem a outra. Nem o driblador que lhe está no sangue nem o atacante objetivo que se pretende que ele seja. Ontem, contra o Casa Pia, Trincão viveu a primeira tarde como jogador-fenómeno ao serviço do Sporting. Fez três golos, o primeiro hat-tick enquanto sénior, levou para casa a bola e o prémio de Homem do Jogo. E o que é que saltou à vista na exibição que ele fez? Nos momentos importantes decidiu rápido. E executou rápido. No primeiro golo, recebeu orientado um passe de Pedro Gonçalves, com o pé esquerdo, e chutou ao segundo toque para as redes, com o direito. No segundo, limitou-se a ajeitar o passe de Esgaio com o pé esquerdo, que é o seu melhor, para chutar em arco ao poste mais distante, com o mesmo pé, outra vez ao segundo toque. No último, decisivo, porque o jogo estava empatado a três bolas e já entrara nos dez minutos finais, deu na bola em vólei de pé esquerdo, ao primeiro toque, enviando para as redes um cruzamento de Pedro Gonçalves. Foram cinco toques para três golos, em três momentos o mais anti-Trincão que pode haver. Trincão é um projeto de craque que está a um pequeno passo de poder chegar ao cume. E o que o jogo de ontem nos disse foi que por vezes tudo se resumirá a simplificar, a resistir à tentação de adornar, de querer entrar com a bola pela baliza. A seguir pelo viaduto em vez de fazer cinco rotundas antes de chegar onde quer.
A surpresa Manafá. A surpresa reservada por Sérgio Conceição para o clássico da Luz, contra o Benfica, não foi a mudança estratégica de que vos falei na crónica analítica do jogo. Conceição nem seria Conceição se, dentro do que se conhece dos seus jogadores, não fizesse uma série de adaptações estratégicas ao que quis que fosse o jogo. A surpresa apresentada pelo treinador do FC Porto no clássico da Luz foi a inclusão de Manafá como lateral direito. Sem João Mário, que não só não tinha 90 minutos nas pernas como voltou a lesionar-se ao fim de menos de um quarto-de-hora, depois de entrar, havia Pepê ou Rodrigo Conceição para jogar ali, mas o treinador do FC Porto apostou em Manafá. O lateral, que esteve em dois dos três campeonatos ganhos por Conceição no Porto, tinha-se lesionado no último jogo de 2021, mas já voltara em Setembro. A questão não era sequer física. Era, em primeiro lugar, de não se lhe adivinhar nos sete meses que mediaram entre o seu regresso e o momento presente o nível que aquele jogo exigiria. Desde Setembro, ele fizera oito jogos pela equipa B, bem como 53 minutos na equipa principal, sempre a sair do banco, antes de ser titular pela primeira vez na ronda anterior, o 1-0 em casa ao Portimonense. E nem se saíra particularmente bem – tal como o resto da equipa, aliás. Mas na Luz já se viu um excelente Manafá. Veloz, confiante, a travar o flanco mais difícil dos líderes da Liga – ainda que com um auxílio importante, ora de Pepê, ora de Otávio – foi sempre rápido a intervir sobre Aursnes, que se não é um portento de criatividade se impõe pela rapidez de decisão e pela forma como é capaz de simplificar processos. Na Luz, Manafá foi – com Grujic – o primeiro a sair, porque ambos tinham já cartão amarelo e havia a expectativa de João Mário poder durar o tempo que faltava, que era pouco mais de meia-hora. Mas no período em que esteve em campo deu para perceber que ele ainda não acabou.
A atitude como desculpa. Gostava de ter uma nota de 500 por cada vez que li ou ouvi alguém explicar a superioridade do FC Porto sobre o Benfica no clássico com questões de “atitude”. Entre os benfiquistas, há os que querem acreditar que o problema naquele jogo foi a equipa já estar a pensar no Inter, que vai defrontar amanhã para a Liga dos Campeões, e que portanto foi quase como se não tivesse ganho porque não estivera para se aborrecer. Da mesma forma, há os que tanto se habituaram a ver nas tardes que correm mal a falta de empenho de um grupo de jogadores-milionários que depois explicam tudo com a mesma nota: “os gajos nem se esforçam, nem se dignam a suar a camisola”. Muitos entre os portistas avaliam o jogo como uma demonstração da “raça que nunca se verga”, como a manifestação da supremacia da capital do trabalho sobre Lisboa, de uma equipa que dignifica o emblema A ver se nos entendemos: as duas equipas quiseram muito ganhar o jogo, os 30 jogadores que estiveram em campo deram tudo o que tinham e sempre que, a este nível, julgarem ver uma “falta de atitude” o mais certo é ela sair de questões organizacionais. Muitas vezes, um grupo de jogadores não corre porque não tem para onde correr, porque o adversário soube fechar-lhe os caminhos. O Benfica-FC Porto caiu para o lado azul e branco porque em campo estavam duas excelentes equipas, mas uma delas está tão viciada num processo que lhe tem servido na esmagadora maioria das tardes e noites que não o altera e a outra soube meter-lhe um grão de areia na engrenagem para a travar, para impedir o tal processo de ser bem sucedido. O Benfica não perdeu por falta de atitude, o FC Porto não ganhou porque os seus jogadores são os únicos que suam a camisola, Conceição não deu um chocolate a Schmidt. Mas sim, o treinador do FC Porto pôs em prática a fórmula de anular os maiores méritos que têm feito a felicidade do técnico do Benfica. E Schmidt, como Conceição após o campeonato de 2017/18 e Rúben Amorim após o de 2020/21, vai ter de enfrentar em 2023/24 a necessidade de reconstruir e mudar qualquer coisa.