Teimosias e adaptações, de Pep a Roger
“Olha, olha, o Guardiola também joga com laterais adaptados”, dizem os especialistas em ser do contra. A diferença entre o City e o Benfica, porém, são as razões pelas quais Pep e Schmidt o fazem.
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Sempre que alguém escreve que “afinal, tal como Roger Schmidt, Pep Guardiola também joga com defesas-centrais adaptados a laterais e não faz substituições a não ser em cima do minuto 90”, só não estamos a sacrificar mais uma árvore na Amazónia porque hoje em dia já poucos o fazem no papel, substituído pelo Twitter na enunciação das teorias de tudo que nos enchem os dias. Os meus problemas com estas comparações são vários – e o primeiro de todos é que não tem nada a ver. Schmidt respondeu ontem tal como se esperava e, vou mesmo mais longe, como tinha e terá de responder até final da época, à pergunta acerca do seu futuro no Benfica – “isso são as vossas histórias”, chutou para canto –, mas é importante entendermos que nem o emprego dele está em causa por jogar com centrais adaptados ou fazer substituições tardias nem deixa de o estar porque Pep faz igual no Manchester City. A conclusão relativamente a cada caso deve ser tomada em função de uma avaliação feita num patamar completamente diverso e que nos manda perguntar: “o que é que ele quer atingir com essas medidas?” Ora, é na total inadequação entre ideia e prática que está o problema, da mesma forma que é essa tão gritante inadequação que me leva a achar que Schmidt não é seguramente o problema único ou maior do Benfica.
Começo por dizer que não encontro uma razão válida para Guardiola recusar as substituições como as recusa. Há-de haver uma que vá para lá do capricho, mas ele ainda não a justificou e, como dizia Johan Cruijff um pouco acerca de tudo, se ele quisesse que a gente entendesse já tinha explicado. A possibilidade de fazer cinco alterações à equipa é uma benesse que os treinadores deviam aproveitar para refrescar o onze que está em campo, para introduzir novas nuances do ponto de vista estratégico e, aparentemente, a razão pela qual Guardiola não a usa até pode ter sido tornada pública por Schmidt na mais recente derrota com o Sporting em Alvalade: “Achei que a equipa estava bem”. Quem estava a ver não achou, a partir de um certo momento, mas lá está, é uma questão de perceção – e aí só mesmo os resultados ou os dados da telemetria vindos dos coletes de GPS dos jogadores é que podem ajudar a entender de que lado está a razão. Guardiola não mexeu na equipa do City no Bernabéu até ter de trocar Foden por Alvarez, aos 87 minutos, mas arrancou de lá um excelente empate a três golos, que leva a discussão da eliminatória para o Ettihad. Schmidt só fez uma troca – e ineficaz – até ao golo de Geny Catamo, já nos descontos do jogo de Alvalade, mas perdeu a partida e complicou as contas da renovação do título de campeão da Liga. Este é, portanto, um tema em que discordo (dos dois), mas em relação ao qual não consigo sequer começar a provar a minha razão indo para lá das sensações.
Mas passemos à questão dos laterais adaptados, porque além de ser mais interessante, por ser demonstrável, ela é mais exemplificativa do problema do Benfica em 2023/24. Laterais adaptados sempre os houve. Há 20 anos era moda ter pelo menos um, inclinando as equipas para um dos lados, o do lado do lateral, chamemos-lhe assim, ofensivo. Ter um central como lateral garantia alguma estabilidade defensiva, porque mantinha sempre a linha de três como base a fechar dentro. A nuance depois caiu em desuso em equipas melhores, não só graças ao desvio do foco defensivo mais para a frente, com a vulgarização da pressão zonal e o incremento das missões defensivas dos avançados e dos médios, como ainda devido à vulgarização do recuo do médio-centro para os momentos em que se tem a bola e da construção a três, com ele ou desde logo através de uma linha de três centrais assumidos. Em Portugal, a diferença marca-se no início do século entre o Sporting de Bölöni e o FC Porto de Mourinho. O primeiro jogava com Beto a lateral-direito – e o central até começou aí pela seleção no Mundial de 2002, por exemplo. O segundo apostava em Paulo Ferreira e Nuno Valente, que embora este último até pudesse até ser adaptável a central, eram laterais muito capazes de subir pelo seu corredor. E fazia-o porque tinha depois avançados como Derlei, que garantiam a segurança defensiva através do seu comportamento sem bola lá na frente.
Quando Guardiola apresenta uma linha de quatro centrais, como fez no Bernabéu e fez em quase todos os jogos grandes, fá-lo em nome de uma estratégia pensada previamente. Akanji, Rúben Dias, Stones e Gvardiol formam linha de quatro a defender, mas quando a equipa tem a bola começa a construir a três, que Stones avança para o espaço dos médios, colocando-se ao lado de Rodri, sendo a largura garantida pelos extremos, Bernardo Silva à direita e Grealish à esquerda. Sem complicar aqui agora a coisa com a inclusão das frequentes trocas posicionais entre Bernardo e Foden, por exemplo, é evidente que a ideia desta particularidade é a de dar aos extremos mais espaço, mais balanço para virem dentro em condução a partir da linha – algo que seria impossível se lá estivessem laterais abertos. A melhor prova de que o City partiu da ideia para a prática está, por exemplo, na dispensa de Cancelo. Cancelo não deixou de ser um dos melhores laterais do Mundo, mas no City tornou-se difícil gerir a sua utilização, porque aquilo que ele faz melhor não é uma das rotinas fundamentais da equipa – e ele, tanto quanto já foi dito, reagiu mal a essa perda de relevância, acabando por sair, primeiro para o Bayern e agora para o FC Barcelona, para não ficar a criar mau balneário.
É aqui que importa que estabeleçamos uma coisa: ao mais alto nível, não há umas ideias melhores do que as outras, por si só. Há, sim, ideias mais adequadas a determinados contextos e grupos de jogadores e outras que sentem mais dificuldades em ver brilhar o sol por se mostrarem, não más, mas inadequadas. A ideia de Schmidt, bem à vista na equipa de 2022/23, passa por ter laterais importantes na organização ofensiva e na criação. E passa por ter gente capaz de condicionar o adversário logo em momento de transição defensiva, de maneira a torná-la rapidamente uma transição ofensiva – daí o Gegenpressing, ou contra-pressão. Quando Roger Schmidt joga com um central como Morato adaptado a lateral-esquerdo está a contrariar as suas ideias, porque ele não vai contribuir a atacar. Quando adapta um médio, como Aursnes, está a contrariar as suas ideias, porque vai perder o impacto que ele – sobretudo ele – dava mais à frente no processo de contra-pressão. A prova de que, ao contrário do City, o Benfica de 2023/24 não foi da ideia para a prática, mas sacrificou a primeira à segunda, é que o clube continuou a contratar laterais. Veio Jurasek, veio Bernat, veio Carreras, mas quem joga mais são Aursnes e Morato. E o que isto me diz, a mim pelo menos, é que Schmidt só é o problema se acharmos que ele foi o alquimista maravilha que construiu a fórmula mágica da equipa da primeira metade da época passada, quando na verdade o que aconteceu ali foi o casamento perfeito entre a ideia dele e o plantel que teve para trabalhar.
Se partirmos do princípio de que o campeonato está perdido – e não está, ainda que esteja muito mal parado – o Benfica começa hoje, contra o Olympique Marselha, uma série que pode ser de cinco jogos nos quais ainda pode salvar a época através da Liga Europa. A melhor forma de o fazer é simples. É partir da ideia.
A dúvida que levanto neste caso é se a direcção do Benfica, quando contrata jogadores, o faz com o aval do treinador, sendo então de Schmidt a culpa da má construção do plantel que, sendo bom, não é o adequado para a sua ideia de jogo. Ou se a direcção do Benfica gere o plantel "à antiga", sem qualquer aval do treinador e aí é incompetência da direcção.