Táticas: o que realmente importa
Em mais de 100 anos de história do futebol, contar-se-ão pelos dedos de duas mãos os treinadores que tiveram ideias verdadeiramente disruptivas. E não é isso que mais importa no trabalho deles.
A primeira vez que falei com Jorge Jesus, já lá vão mais de 25 anos, foi num aniversário do jornal Record, quando o atual treinador do Benfica ainda trabalhava no FC Felgueiras e eu, além de editar o desporto do Público, comentava jogos da Liga espanhola na TVI. O motivo da conversa foi sobretudo um: Cruijff, que por esses dias comandava a equipa do FC Barcelona onde se estreara Figo. Jesus era um estudioso das tendências, até já tinha estagiado com o holandês, e adorava explicar a relação entre os exercícios de treino e o futebol que a equipa catalã desenvolvia, bem como os princípios que procurava adaptar à realidade nacional na sua própria equipa. Porque o futebol sempre foi um bocado isto: aprender com os melhores. E isso não se vê nas táticas, mas sobretudo nos princípios. Uma equipa pode até dispor os seus jogadores na mesma “fórmula” de arranque de outra e ser muito diferente na sua forma de jogar.
Veja-se o caso das equipas de FC Porto e Benfica, esta época. Ambas utilizaram mais vezes o 4x4x2, mas fazem-no de formas muito diferentes. E não falo apenas – nem sobretudo – das questões de posicionamento, se têm os alas mais dentro ou mais abertos, se os avançados jogam lado a lado ou um atrás do outro, se os médios jogam a par ou com um deles mais fixo. Isso é importante, como já expliquei ontem, em termos relativos: os jogadores têm de ter sempre a segurança que lhes é dada pelo posicionamento relativo dos colegas mais próximos, aqueles com quem fazem “sociedades”, tanto ofensivas como defensivas. Mas falo sobretudo da alma de cada equipa, da forma como cada uma veste o seu 4x4x2, fazendo dele um sistema único. Os jogadores de FC Porto e Benfica expressam-se mais confortavelmente no seu 4x4x2, porque foi o sistema que trabalharam mais vezes, que sabem de cor, mas não é o sistema que define o futebol das duas equipas. Da mesma forma que o SC Braga de Carlos Carvalhal não se torna uma equipa esquizofrénica só porque muda de sistema consoante o momento do jogo: tem três centrais a defender e só dois quando recupera a bola e o central esquerdo se assume como lateral.
Não tenho sequer a pretensão de entrar na distinção que a teoria faz entre sistema e modelo, entre posicionamento e comportamento nos diversos momentos do jogo. É o segundo que melhor define uma equipa, mas não tenciono enveredar por uma explicação tão profunda e estabelecer o que faz cada elemento de cada equipa em cada um dos quatro momentos do jogo. Isso seria demasiado exaustivo. Ainda assim, há aspetos que entram pelos olhos dentro como bem mais definidores das equipas do que a sua “tática”. Mais do que pelo seu 4x4x2, o FC Porto é definido pela forma como, em posse, em certos momentos ataca a profundidade desde cedo e noutros explora as diagonais dos avançados e os movimentos contrários de Corona e Otávio. Porque futebol é ocupação de espaço, é assegurar que todo o espaço tem uma solução, e o que funciona é a harmonia.
No Benfica, há muito mais corredor central – ideia que Jesus foi buscar mais a Guardiola do que a Cruijff – e daí a insistência em médios-ala de pés trocados, isto é, um esquerdino na direita e um destro na esquerda. Há dois pontas-de-lança que se completam muito mais na profundidade do que na largura: os atacantes do FC Porto tentam ocupar o espaço na largura, isto é, se um está dentro, o outro abre na linha; os do Benfica fazem-no mais na profundidade, isto é, se um busca jogo atrás da última linha adversária, o outro baixa em apoio para aproveitar o espaço entrelinhas que possa ter sido criado. E há uma forma de defender muito mais marcada por referências individuais, que volta a trazer à tona a luta de influências de que falei a propósito do Mundial’74. O FC Porto defende em zona pressionante e o Benfica fá-lo definindo uma primeira pressão que é sobretudo individual. Estou convencido, aliás, que foi para facilitar esse momento do jogo que Jesus optou por três defesas-centrais no jogo com o SC Braga, de forma a que Veríssimo, Otamendi e Vertonghen pudessem encaixar em Horta, Ruiz e Piazón.
De todos, o SC Braga é a equipa em que mais se acentua esta dimensão híbrida. Porque se defende com três centrais, mas em posse o central-esquerdo, seja ele Raúl Silva, Sequeira ou Borja, assume uma função diferente do direito: sobe como lateral, dessa forma libertando o ala esquerdo (Galeno) para se assumir como mais um atacante e permitindo que o avançado-esquerdo (Horta) jogue mais por dentro. Aqui, as dinâmicas mudaram com a lesão de Iuri Medeiros, que à direita do ataque fazia mais o papel de extremo em diagonais (o tal extremo de pé trocado, no caso um esquerdino à direita), enquanto que Piazón, que o substituiu, é mais um médio, importante nas entrelinhas. Mas a ideia continua a ser a mesma, com aquele efeito-dominó que descrevi na Holanda de 74: inclinar a equipa adversária para aquele lado de forma a, depois, mudar o corredor e aproveitar o espaço que ela inevitavelmente há-de ter deixado do outro.
Todas as equipas de topo do futebol português têm as suas particularidades e de nenhuma delas pode dizer-se que seja absolutamente inovadora. A discussão que tanto tem animado os debates, em torno de quem copiou quem, na verdade vale zero: contar-se-ão pelos dedos de duas mãos os treinadores que tiveram ideias totalmente disruptivas em mais de 100 anos de história do futebol. E provavelmente nem terão sido os que mais sucesso tiveram com elas. Porque um bom treinador não é aquele que inventa táticas, o que desenha estratégias infalíveis para este ou aquele jogo. É o que encontra a melhor ideia para os recursos ao seu dispor e depois consegue aperfeiçoar a conjunção desses dois fatores através de uma boa operacionalização no treino e de uma liderança que leve os jogadores a acreditar naquilo que estão a fazer. Isso é que importa.
O resto são “pinners”.
Este Último Passe vem na sequência do de segunda-feira (Amorim, Jesus e os três centrais), do de anteontem (Táticas: uma lição de história) e do de ontem (Táticas: da inovação à evolução).