Táticas: da inovação à evolução
Rúben Amorim não inventou nada, nem nos posicionamentos nem nos princípios. Nem precisou, de resto. Os méritos do treinador do Sporting têm sobretudo a ver com a forma como trabalhou isso tudo.
A história tática do futebol está repleta de invenções. Durante anos ouvi o malogrado Manuel de Oliveira, mestre de Jorge Jesus, que chegou a ser meu “colega” como comentador de rádio, contar que tinha sido ele a inventar o 4x4x2, num jogo da CUF contra o Milan, em 1965, ou que o 3x5x2 nascera no seu Barreirense, nos anos 70. Na verdade, se por um lado a falta de escrutínio global, numa era em que os jogos raramente eram televisionados, torna impossível atribuir patentes de descobertas táticas como essas com razoável margem de segurança, hoje isso é relativamente irrelevante, porque o crescimento da dimensão atlética no jogo e o que ele permite aos jogadores em termos de crescente mobilidade tornou o futebol menos rígido e fez com que os princípios sejam atualmente mais importantes do que os posicionamentos de base. E é na capacidade de trabalhar os sistemas, de adaptar princípios a uma identidade tática de base que está o segredo do sucesso.
Há lendas que vale a pena conhecer, quanto mais não seja porque, não sendo verificáveis, são bonitas. É o caso da história da conversa de Herbert Chapman com Charlie Buchan, o seu médio-centro no Arsenal em 1925, da qual terá nascido o WM, depois de um 0-7 contra o Newcastle United, por exemplo. A lei do fora-de-jogo mudara e isso convidava o “center-half” a assumir funções mais recuadas – razão pela qual em Inglaterra ainda hoje se chama “médio-centro” a quem joga como “defesa central”. Ou a história de como a Hungria dos anos 50 terá transformado esse WM em 4x2x4, através do recuo do avançado-centro e do avanço dos dois interiores, assim confundindo todo o jogo de marcações aos adversários. Mas estamos a falar de outro futebol, de um futebol sem observação de vídeo – em que estas alterações tinham mesmo impacto brutal quando eram colocadas em prática, porque ninguém estava à espera delas nem se preparara para as contrariar. Hoje isso deixou de acontecer e não é a mim que vão ouvir ou ler que o conhecimento é mau porque destruiu o romantismo que se fundava na ignorância.
A verdade é que o futebol de hoje depende, de facto, menos dos sistemas táticos – a ponto de ser relativamente impossível dizer em que sistema uma equipa joga e a melhor forma de a caraterizar seja o modelo, isto é, os princípios subjacentes ao seu jogo. O Sporting, afinal, joga como? Uns dirão que em 3x4x3. Outros que o faz em 5x2x3. Outros ainda que alinha em 5x4x1. E estamos a falar da equipa taticamente mais rígida das quatro primeiras classificadas no que toca a posicionamentos, a única que mantém sempre o sistema, estejam os jogos a correr como estejam. E acho mesmo que essa rigidez posicional tem sido a base do sucesso do Sporting, porque enquanto os outros andavam a jogar na Europa, nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro, Rúben Amorim teve tempo para treinar e aperfeiçoar um sistema que os jogadores já conhecem de olhos fechados, conferindo-lhes a capacidade de atuar individualmente em várias funções. O mérito de Rúben Amorim neste Sporting não foi o de ter inventado coisa nenhuma. Está a ser, isso sim, o de ter trabalhado e rotinado o sistema e de nele ter encaixado o modelo, os princípios básicos de jogo da equipa.
Quando precisa de mexer com o jogo, Amorim não muda o sistema mas as caraterísticas dos jogadores que ocupam cada posição: se tem de ir à procura do golo de forma um pouco mais desesperada, tira um central, baixa um lateral para central e coloca um extremo como lateral ou então joga com dois médios mais criativos em vez de ter um mais recuperador (e se nada disto resultar manda avançar Coates…). Se tem de defender um resultado, coloca dois médios mais fortes defensivamente e faz entrar um central para uma lateral. Nada disso, contudo, interfere, com o sistema: de base, o Sporting joga em 3x4x3 em início de organização ofensiva, muda para 5x2x3 em transição defensiva e baixa para 5x4x1 ou eventualmente 5x3x2 em organização defensiva. Quer então dizer que o sistema não é importante? Não. O sistema, no Sporting de Rúben Amorim, é extremamente importante, não enquanto fotografia global, mas no sentido em que os jogadores se posicionam uns face aos outros. E isso não muda, seja qual for a combinação matemática.
Já é mais difícil, por exemplo, dizer em que sistema joga o FC Porto. É 4x4x2? É 4x3x3? Depende. Uma das forças do FC Porto é a utilização de peças móveis no sistema em função das quais se articula toda a equipa. Ou qual é o sistema do SC Braga de Carlos Carvalhal. É 3x4x3? É 4x2x3x1? Depende. Porque, sendo previsível na alternância entre fases defensivas e ofensivas, este SC Braga varia muito em função do posicionamento do defesa-central que se coloca à esquerda e se ele assume funções de central ou de lateral. Nesse aspeto, quem mais tem variado até é o Benfica de Jorge Jesus, seja porque troca o segundo avançado – se ele é Darwin é uma coisa, se é Waldschmidt é outra, se é Pizzi é outra ainda – ou porque opta por colocar três atrás de modo a favorecer o modelo defensivo de referências individuais em que mais tem apostado recentemente.
Mas voltarei a este assunto em breve. Amanhã ou, se a seleção se intrometer, o mais tardar na sexta-feira.
Este Último Passe vem na sequência do de anteontem (Amorim, Jesus e os três centrais) e do de ontem (Táticas: uma lição de história) e será continuado em breve.