O décimo-segundo jogador
A importância de Füllkrug no futebol da Alemanha faz voltar a questão: e se o futebol se jogasse a doze? Porque há equipas onde falta sempre um mas nas quais não se pode tirar nenhum outro.
Julian Nagelsmann começou os três jogos da Alemanha na fase de grupos deste Europeu com o mesmo onze, mas só com um golo do suplente Niclas Füllkrug, já nas compensações, evitou a derrota na última partida, contra a Suíça (1-1). Ainda que perdessem, os alemães apurar-se-iam na mesma, se calhar até com um sorteio mais favorável, mas o facto de entrarem na fase a eliminar invictos pode ajudar a equipa a crescer em torno da confiança em si própria. Além disso, o que se passou ontem em Frankfurt permitiu que a memória coletiva da nação viesse recuperar histórias de outras fases finais, ganhas à conta de suplentes de ouro. Ontem, depois do jogo, falaram a Nagelsmann no golo de Neuville à Polónia, a valer um 1-0 mesmo em cima da hora, na fase de grupos do Mundial de 2006, mas aquilo que se vê Füllkrug representar nesta equipa é muito mais o que por ela fizeram Hrubesh no Europeu de 1980 ou Bierhoff no de 1996: suplentes de início, acabaram ambos a obter os golos decisivos nas respetivas finais, as duas últimas conquistadas pela Alemanha nesta competição. Com 13 golos em 19 jogos por uma seleção à qual só chegou quando estava prestes a fazer 30 anos, o ponta-de-lança do Borussia Dortmund tem um efeito tal na equipa que leva a que se questionem as razões da sua continuação no banco. Porque não é titular? Uma das razões é a humildade que deixa ver sempre que abre o sorriso e revela aquele inestético espaço entre dentes, que contrasta com o maxilar perfeito construído em clínicas especializadas por qualquer jogador de top. Füllkrug vai para o banco porque não se rala, fez vida disso, até em equipas menos importantes do que as que representa agora. Outra razão, bem mais relevante, é o facto de ele ser uma espécie de corpo estranho à equipa, que faz da mobilidade ampla de todos os jogadores de ataque a sua identidade. Ali não cabe, de base, um homem cujo espaço de atuação quase se resume à área. É fácil para quem está de fora ver que Havertz, o ponta-de-lança titular, só marcou um golo nos dez remates que fez (1.57 de xG), em 201 minutos em campo, e foi de penalti, ao passo que Füllkrug marcou duas vezes em três remates apenas (0.54 de xG), distribuídos por apenas 73 minutos em campo. A cadência de remate é mais ou menos a mesma, a eficácia é superior em Füllkrug, mas o jogo da equipa depende mais do poder associativo de Havertz. Meter Füllkrug na equipa da Alemanha é um pouco como teria sido meter um ponta-de-lança eminentemente finalizador mas menos combinativo no Portugal de 1996, equipa que tocava e circulava a bola como nenhuma outra, mas à qual depois faltava a capacidade para ser mais concreta frente à baliza. Até podíamos metê-lo lá, mas se para isso fosse obrigatório retirar um dos membros do carrossel – Figo, Rui Costa, João Pinto, Sá Pinto, até Paulo Sousa... – a equipa perderia imediatamente parte da sua capacidade para envolver, desequilibrar, criar as situações de perigo que ele depois pudesse aproveitar. Enquanto não se resolver essa equação nestas equipas, goleadores como Füllkrug vivem com situações como a que experimentou Jorge Cadete quando, aos 82’ do jogo dos quartos-de-final com a República Checa, em 1996, ouviu da boca do selecionador, António Oliveira, que tinha 45 minutos para resolver o jogo. Eram os oito que faltavam, mais uns cinco de descontos e os 30 de prolongamento, contando que ele fizesse o golo que valesse o empate antes dos 90’. Não fez. E como esse golo salvador nem aparece frequentemente, estas serão equipas muitas vezes condenadas. Pelo menos até ao dia em que o futebol permita a entrada de um décimo-segundo jogador.
A agenda dos comentadores. Está entornado o caldo na seleção inglesa. No podcast The Rest is Football, Gary Lineker referiu-se ao futebol da equipa como sendo “shit” e a coisa não foi bem vista no estágio, por ter sido dita por quem foi. Ontem, Harry Kane, capitão da seleção dos três leões, que também foi visado por Lineker e Alan Shearer, antigo ponta-de-lança da seleção, por jogar demasiado atrás no campo, atirou-se aos comentadores. E ainda que um dos argumentos esgrimidos por Kane não faça qualquer sentido, o outro, curiosamente o que os jogadores menos sentem e em que as pessoas menos pensam, já é relevante. Primeiro, diz Kane, Lineker, como antigo internacional e, mais, ex-capitão da seleção, tem responsabilidade acrescida. “Todos têm as suas opiniões, mas esta seleção já não ganha nada há muito, muito tempo, com esses jogadores na caminhada. Eles sabem como isto é difícil”, disse. “Lembrem-se do que é vestir esta camisola e que toda a gente vos ouve. Ajudar a encher esta rapaziada de confiança seria uma forma melhor de fazer a coisa”, explicou. E aqui não tem razão. Sim, o estatuto de ex-jogador ajuda a conseguir lugar nos painéis de comentário, que se multiplicam cada vez mais à medida que se esbate o espaço entre comunicador e destinatário, mas ninguém está lá apenas ou sobretudo por ter ganho ou marcado o golo da vitória em grandes torneios – em Portugal, o Éder teria de estar em todos os canais – ou para fazer conversas motivacionais. Seja ex-jogador ou ex-jornalista, o comentador tem o dever de ser honesto com o que está a ver, sem olhar a amigos ou ex-companheiros. E, ao contrário do que sugere Kane e do que muitos dos espectadores de qualquer nacionalidade entendem, o melhor serviço a prestar à equipa não é virar os olhos ao que está mal, mas sim identificar os problemas, ajudar quem está em casa a entendê-los também. Quantas vezes acabei o comentário aos jogos da seleção com dezenas de mensagens insultuosas, nas redes sociais, a acusar-me de não querer que Portugal ganhe... Sempre o quis, mas esse não é nem pode ser o ponto, porque podia não o querer e não seria por isso que passaria a ver pior o jogo. Se é para animar a malta, não se contratam comentadores mas apresentadores de espetáculos que levem o público à euforia. Há um aspeto, contudo, em que Kane tem razão. “Nos podcasts, as pessoas querem promover os próprios canais e às vezes as manchetes são determinadas para se ter mais visualizações”, disse. Esse é que é o problema. É que se gerou a ideia de que a análise não interessa a não ser que seja radical – e, pior, que quem não acha que esta seleção é a pior ou a melhor de sempre é por cobardia e jamais por ter a capacidade de enquadrar o que está a ver na realidade. Sim, muitos comentadores têm uma agenda – e ela não é clubista. É determinada pela necessidade de ganhar escala, de chegar a mais e mais gente, de ser falado, procurado e de aumentar o valor facial. Mas nisso, meus amigos, têm de ser sempre vocês a decidir o que querem.
Viagem à Alemanha. Como hão-de ter reparado, no sábado não escrevi a crónica habitual do Europeu, uma crónica que era suposto ser diária. Não expliquei aqui as razões, fi-lo nas minhas redes sociais (aqui têm a história num post de Facebook ou numa thread do Twitter, conforme a rede da vossa preferência), mas basicamente tudo teve que ver com a complicação de uma viagem para Dortmund, onde fui comentar, no local, o Portugal-Turquia, para a RTP. Viajei via Munique, o segundo voo foi anulado, estava um caos no aeroporto, de onde só conseguimos sair às 22h, sem ter sequer uma alternativa da companhia aérea, pelo que tivemos de encarar os 600 kms de carro até Dortmund pela madrugada – era a única forma de garantirmos que não íamos falhar os diretos marcados para as horas antes do jogo. Chegámos a Dortmund às seis da manhã e não houve tempo para mais do que dormir um pouco, tomar duche, mudar de roupa e levantar as acreditações. Quer isso dizer que, para ir à Alemanha, não vi os jogos de sexta-feira (estava a voar) e para regressar também não pude ver os de ontem. É legítimo que me perguntem: “então porque vais? Não era mais fácil ficares a comentar em estúdio?”. E sim, era mais fácil. E era possível. Hoje, por exemplo, vou comentar o Itália-Croácia estando em Lisboa. Mas convido-vos a lerem esta análise muito interessante de Ahmed Walid, no The Athletic, acerca da importância das movimentações sem bola dos jogadores portugueses no jogo com a Turquia e a contarem as vezes que ele escreve “fora do plano” para se referir a movimentações importantes que não são captadas pela realização. Comentar futebol não é uma ciência oculta, mas faz-se muito melhor no estádio do que no estúdio. Seja para ver e poder explicar todas as movimentações – incluindo aquelas que vocês não estão a ver, por se desenrolarem “fora do plano” –, seja para vos contar o que de facto se está a passar, como as seis invasões de campo em busca da selfie com Cristiano Ronaldo, e que as realizações destes eventos, cada vez mais confundidas com comunicação corporate, não vos mostram. É por isso que no próximo fim-de-semana voltarei à Alemanha, para comentar o jogo da seleção nos oitavos-de-final.
Entrelinhas
Too famous for football? Ronaldo has outgrown the sport that made him, por Barney Ronay, no The Guardian, questiona a resposta da FIFA e da UEFA à crescent popularidade global do capitão português.
Pepe is Portugal ageless wonder – and older than a third of the nations at Euro 2024, artigo de Jacob Whitehead, no The Athletic, sobre a longevidade do central português.
Un detective emocional, un Spielberg y un buscador de keywords, reportagem de Eduardo J. Castellao, no El Mundo, sobre a composição da equipa técnica da Espanha.
El Dinamo de Zagreb, zona cero croata em la última batalla de ‘Los hijos de la guerra’, artigo de Abraham P. Romero sobre a influência da academia do Dínamo na seleção da Croácia.
El fichaje catalán de Albania, por David Álvarez, no El País, conta a história de Ivan Balliu, o ex-jogador do FC Arouca, formado no FC Barcelona, que joga na seleção albanesa.
Pedri: “Em el campo no pienso; hago lo primero que se me passa por la cabeza”, entrevista de Juan I. Irigoyen e David Álvarez a Pedri, no El País.
What England will gain and lose by replacing Trent Alexander-Arnold with Conor Gallagher, análise de Liam Twomey e Mark Carey, no The Athletic, projetando a alteração que deve fazer Southgate no onze de Inglaterra.
La Ruhr, la mine radieuse, reportagem de Simon Bolle em Essen, Dortmund e Gelsenkirchen, zona mineira que é a base histórica do futebol alemão.
France, racial politics and why the ‘Mbappé effect’ is shaping a bitter election, artigo de Oliver Kay, no The Athletic, sobre o terremoto que as tomadas de posição dos jogadores da seleção causou na política francesa.
Afinal para fazer os 600 Km quanto tempo demoraram?