Ratos de laboratório
É a experimentar que se veem as melhores formas de interagir com a realidade. Ontem, a UD Leiria fez um esforço meritório – mas falhado – de contrariar o Sporting. Domingo, volta a calhar ao SC Braga.
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O Sporting voltou ao andamento habitual e passou por cima da UD Leiria, ontem, em jogo da Taça de Portugal. O desfecho do jogo foi o normal, por duas razões: os leões têm melhores jogadores e a estratégia leiriense acabou por se revelar curta para contrariar essa vantagem. Uma visão redutora da coisa podia apontar para o facto de, assumidamente, Vasco Botelho da Costa ter reconhecido que baixara o bloco de forma a tirar a Rúben Amorim a possibilidade de explorar a profundidade de que tanto gosta Gyökeres, partindo daí para dizer que a UD Leiria até levara o autocarro para o relvado, que raramente passara o meio-campo na primeira parte, até estar a perder por 2-0, mas a questão não era, de todo, essa. Não se avalia uma estratégia só pela altura do bloco, como não se avalia só pelas referências de marcação, pela forma de iniciar a organização ou pelo comportamento em momentos de transição. A mínima alteração num destes fatores interferirá com os outros – e a troca de jogadores, de equipa para equipa, faz com que o que resulta com uns depois possa falhar com outros. É por isso que cada jogo é diferente e nos confronta com milhares de complexos detalhes importantes para a sua análise. Ontem, a UD Leiria baixou a última linha para reduzir o espaço entre ela e o guarda-redes, procurando tornar raros os movimentos de rotura de Gyökeres, mas também baixou mais gente em início de construção, para atrair a marcação leonina e explorar depois as saídas rápidas dos seus homens da frente. A questão é que são precisos dois para dançar o tango – o que neste caso tem um duplo sentido… Por um lado, o Sporting não foi no engodo pressionante e deixou sempre três atrás, para haver uma sobra caso Quaresma ou Matheus Reis fossem batidos por Jair ou Jordan na eventualidade de uma saída rápida que passasse pelo coador sempre eficaz que estava a ser Hjulmand. Logo no início da partida, há mesmo uma imagem, feliz na confusão que têm sido as realizações televisivas da Taça de Portugal, a mostrar Amorim com três dedos esticados e a gritar isso mesmo: “Três!”. E não, não estava a vaticinar o resultado final. Era mesmo para que a equipa construísse a três e mantivesse os três atrás e a sua habitual organização ofensiva em 3x1x6. Depois, para que esta estratégia fosse minimamente ameaçadora, a UD Leiria tinha obrigatoriamente de manter dois homens na frente, um descaído para cada lado – o que acarretava o problema acrescido de só lhe sobrarem mais três para compor a segunda linha, a de meio-campo, reforçando o espaço interior mas desprotegendo os corredores laterais. Foi muito nas associações entre Catamo e Edwards pelo lado direito e de Nuno Santos e Trincão – com as chegadas de Pedro Gonçalves, em acréscimo – na esquerda que os leões criaram mais desequilíbrios, deixando sempre Ouattara e Empis em inferioridade. O esforço de Botelho da Costa foi bom, mas não passou o teste do laboratório. No caminho dos leões, segue-se o SC Braga, que esta época já os defrontou por duas vezes e nunca perdeu. A antevisão do jogo de domingo será do mais interessante que se pode imaginar no plano estratégico, porque os minhotos têm um empate e uma vitória sobre o Sporting, mas podiam muito bem ter perdido os dois jogos – que, sim, há ainda esse detalhe, de uma melhor ou pior definição dos lances a que a estratégia conduz. Irá Artur Jorge repetir a marcação dupla a Gyökeres, com encaixe dos dois médios nos dois atacantes interiores leoninos? Acreditará ele numa terceira ocasião feliz? E o que terá Rúben Amorim preparado para contrariar esse espartilho? É um pouco aí que começa a resolver-se o campeonato.
Memórias de Armando. Começo por dizer que já vi jogos de futebol em condições bem mais complicadas do que as enfrentadas por Santa Clara e FC Porto, ontem, nos Açores. Estava a ver o jogo e a achar que o pântano em que se transformara o relvado do Estádio de São Miguel era a maneira mais viável de equilibrar as forças em competição, de diminuir a vantagem que a maior qualidade individual e coletiva traria aos dragões, quando no banco azul e branco se pensou exatamente a mesma coisa e se começou a pedir a interrupção. Foi nessa altura que me lembrei, por exemplo, de Armando, um ponta-de-lança guineense que brilhou no início da década de 80 com a camisola do Salgueiros, sobretudo porque era fisicamente muito forte e juntava à potência o conhecimento exato das zonas em que a bola parava e daquelas em que, pelo contrário, ela entrava numa espécie de aceleração por aquaplaning no então recente relvado de Vidal Pinheiro. Isto não sabia de ciência certa, mas fui ver e confirma-se: Armando foi o quarto melhor marcador da Liga de 1985/86, com 14 golos, sete dos quais marcados em seis jornadas seguidas, entre o final de Novembro e o início de Janeiro. Era o protótipo do jogador de Inverno num desporto que é descrito como sendo também ele invernal. Mas o facto de já se ter jogado em condições muito piores do que as que as duas equipas tiveram de enfrentar ontem não quer dizer que se devesse seguir com o jogo. É que o futebol mudou muito nos 40 anos que passaram desde que Armando subiu aos seniores do Salgueiros. E hoje já não há justificação para se tentar fazer passar por futebol o que parecia um festival de pólo aquático.
O grito de Enzo. Os ingleses adoraram a manifestação de Enzo Fernández, ontem, depois de marcar um golaço de livre direto na vitória do Chelsea contra o Aston Villa, na Taça. Foi aos 54’, fez o 3-0, arrumou logo ali a questão do apuramento, depois de duas derrotas duras de engolir pela sua equipa, contra o Liverpool FC e o Wolverhampton WFC, ambas com chapas quatro nada condizentes com o volume de investimento feito. Quando viu a bola nas redes, Enzo correu para um canto, tirou a camisola em júbilo incontido e apontou alternadamente para o emblema e para o chão. “Eu fico aqui!”, declarava, em resposta aos rumores segundo os quais estaria já desesperado para deixar o Titanic em que se tinha metido, por não lhe ver outro movimento a não ser o descendente, em direção à escuridão do fundo do mar. Entendo o entusiasmo, sobretudo de quem acha que o Mundo acaba no cais de Dover e nunca sabe de nada do que se passa para lá do canal da Mancha. Porque se lessem, saberiam que já foi exatamente isso que Enzo fez a 10 de Janeiro do ano passado, depois de marcar, na Póvoa de Varzim, o golo que tranquilizou o Benfica em jogo dos oitavos-de-final da Taça de Portugal. E um par de semanas depois estava a forçar a saída para Londres. Desta vez, é seguro, Enzo não vai sair, que os mercados que contam estão fechados. Mas no Verão...
O Peseiro 2.0. Há coisas em José Peseiro que não mudam, como o nervosismo mal-escondido nos momentos de maior tensão. Ontem, no desempate por penaltis entre a Nigéria e a África do Sul, na primeira meia-final da CAN, lá surgiram os famosos movimentos em que ele parece desviar-se de uma barreira invisível para ver melhor, pés bem firmes no chão, corpo inclinado ora para um ora para o outro lado e braços sempre hirtos. Ali estava o Peseiro de há 20 anos, daquela época em que conduziu o Sporting a uma série de decisões, acabando por perder ingloriamente a Liga e a Taça UEFA. Mas depois houve coisas que mudaram – e já mudaram há alguns anos, creio que logo desde a passagem pelo Panathinaikos, em 2007. As equipas de Peseiro nunca mais foram tão entusiasmantes como esse Sporting ou até como o Nacional que ele liderara antes de chegar a Alvalade. É que na visão do treinador de Coruche há uma dicotomia difícil de contrariar entre organização e desorganização, entre harmonia e caos, um combate de acordo com o qual quanto mais imprevisível uma equipa for quando ataca mais incompetente se torna a defender. Perdi a fase inicial desta CAN, que fui acompanhando só por resumos, mas sempre que falava com alguém que estava a ver ouvia a mesma coisa: que esta Nigéria jogava pouco, tendo em conta a qualidade dos atacantes que tinha à disposição, de Lookman a Osimhen, já para não falar de Chukwueze ou Iheanacho. A todos fui dizendo, mais por fezada do que por conhecimento real, que nas equipas de Peseiro, é quando jogam menos que se tornam mais perigosas. E a Nigéria lá está, na final.