Rafa e a seleção nacional
Rafa faz sentido nos 26 convocados de Fernando Santos para o Mundial? Sem dúvida. Mas faz o suficiente para que a equipa seja construída em função das suas caraterísticas e se abdique de outros? Não.
A preponderância de Rafa no extraordinário arranque de época do Benfica veio relançar a questão da renúncia do atacante à seleção nacional, anunciada imediatamente antes da ronda de jogos da Liga das Nações, no mês passado, depois de ter sido chamado por Fernando Santos. Foi a ponto de Paulo Futre, uma das poucas personagens consensuais no que toca a clubismo no futebol nacional, ter vindo pedir que o jogador e o selecionador “se sentem os dois” para resolver quaisquer problemas que haja entre eles. Porque, diz Futre, não há um selecionador no Mundo que queira abdicar de um jogador na forma em que está Rafa. Ora isso é verdade. Que Rafa faz sentido na lista de convocados portugueses para a fase final do Mundial não tenho dúvidas. Que a seleção nacional deva mudar, como mudou o Benfica, para encaixar as caraterísticas do atacante ribatejano, já não me parece. Porque aí estaríamos a desperdiçar outros talentos.
Roger Schmidt começou a época com Rafa na esquerda e João Mário ao meio. Ao fim de um par de jogos de pré-época, mudou. E fez bem. Porque, tal como o alemão explicou no final do jogo com a Juventus, no qual o Benfica garantiu a passagem aos oitavos de final da Liga dos Campeões, partindo dali “ele pode procurar os espaços que mais lhe convêm”. Durante anos, Rafa foi visto como um extremo. Ainda na época passada, depois de lhe ter sido permitido ir em busca de espaços mais interiores no 3x4x3 de Jorge Jesus – porque os três da frente não buscavam largura mas sim o corredor central –, voltou à ala quando o treinador saiu e para o seu lugar foi promovido Nélson Veríssimo. Ora Rafa é um bom extremo, em boas condições pode até ser um extremo de seleção, porque é capaz de imprimir velocidade nos arranques e de desequilibrar em ataque rápido e contra-ataque, mas partindo da ala dificilmente estará à frente de gente como Diogo Jota, Rafael Leão ou até Gonçalo Guedes. E é muito melhor como avançado solto de corredor central. Como aquilo a que costuma chamar-se segundo ponta-de-lança.
A primeira questão a colocar é: Portugal vai jogar com dois avançados de corredor central, como faz o Benfica com Rafa e Gonçalo Ramos? À partida não. E não é por uma embirração do selecionador. É para poder aproveitar melhor os outros jogadores de que dispõe. Já defendi o 4x4x2, por exemplo, antes do último Europeu, para poder resolver o puzzle tático que é apresentado por Ronaldo, que também precisaria de um ponta-de-lança de suporte para poder soltar-se pelo campo. Mas imaginemos que Santos seguia o conselho de Futre e fazia agora aquilo que não fez há ano e meio, isto é, que construía a sua equipa em função da melhor forma de servir as caraterísticas de Rafa. Imaginemos até que a coisa funcionava com ele e Ronaldo como parelha de atacantes, esquecendo por momentos que no Benfica só resulta porque para Rafa poder, como explica Schmidt, “buscar os espaços que lhe convêm”, está lá o trabalho de sapa de Gonçalo Ramos. Coisa que dificilmente Ronaldo poderá fazer nesta fase da carreira. Ou imaginemos que até estávamos prontos para abdicar do capitão – e eu ainda não estou... – e que jogávamos, por exemplo, com Rafa e André Silva, que pode fazer esse papel, como podem também desempenhá-lo Paulinho, Vitinha ou até o próprio Gonçalo Ramos, para aproveitar a química estabelecida entre os dois. Um 4x4x2 deste calibre – ou um 4x2x3x1, se quisermos – precisa de duas coisas. De um par de médios muito forte com e sem bola e de dois extremos – ou pelo menos um – com capacidade para fazer muitas vezes de terceiro médio.
Ora isto implicaria deitar pelo cano uma série de jogadores de que, para usar a expressão de Futre, também nenhum selecionador do Mundo quereria abdicar. Nada de extraordinário, para quem já teria deitado fora Ronaldo – “ele afinal de contas nem joga no clube”, podíamos pensar, para apaziguar os remorsos. Isso poderia levar a que já não doesse tanto desperdiçar João Félix, que também pouco conta no Atlético Madrid de Simeone. Mas entre Rafael Leão, Diogo Jota, Gonçalo Guedes e Ricardo Horta só poderíamos escolher um – nos jogos menos exigentes, que nos mais difíceis até Schmidt entra com João Mário e Aursnes ao mesmo tempo. A outra vaga de médio-ala, o tal que se converteria muitas vezes em terceiro médio, seria disputada por Bernardo Silva, Otávio, João Mário e Pedro Gonçalves. Então, mas não tínhamos todos chegado já à conclusão de que Bernardo faz mais sentido ao meio do que desterrado num corredor lateral? Tínhamos, mas para jogar com um par de médios, a não ser que sejamos o Paris Saint-Germain, convém que um deles seja capaz de garantir equilíbrios com e sem bola. Para esse lugar teríamos Rúben Neves, Palhinha, Moutinho, William e, já que estamos a decalcar a coisa do Benfica, até Florentino, uma vez que Danilo faz muito mais sentido como defesa-central – onde ainda por cima a concorrência é menos feroz. Para a outra vaga sobrariam Bruno Fernandes, Vitinha, Matheus Nunes e Renato Sanches. Por aqui se vê que para aproveitar Rafa estaríamos a desperdiçar muito.
O que faria sentido era que Rafa estivesse nos 26, para poder corporizar uma espécie de Plano B, para poder servir de revulsivo em jogos que pedissem uma mudança de caraterísticas, uma aposta mais firme na velocidade no espaço interior. Mas isso é o que ele tem sido nos últimos anos. E podia sê-lo melhor agora, que está num extraordinário momento, do que vinha sendo até aqui. A questão é que para isso era preciso o jogador aceitar. Ou melhor, ter aceitado, no mês passado, que foi quando ele próprio se colocou à margem. Ou então vir agora explicar muito claramente que razões o levaram à renúncia, de forma a que ela não seja vista como o sacrifício dos interesses coletivos à sua vontade individual, aceitando as regras do jogo numa seleção. E fazê-lo de forma a convencer, não a mim ou aos adeptos, mas ao selecionador e aos colegas. Estará ele disponível para isso?