Quando dois querem
Mesmo sem várias primeiras figuras poupadas pelo FC Porto, a eliminatória com o Académico de Viseu foi interessante de seguir. Sobretudo porque havia duas equipas a querer ganhá-la.
Os primeiros dois jogos dos quartos-de-final da Taça de Portugal correram sem surpresas, com as vitórias de FC Famalicão e FC Porto sobre as equipas da II Liga que lhes couberam em sorteio, a B SAD e o Académico de Viseu. Deram mais réplica os beirões, em parte porque lhes coube jogar em casa, em parte porque já tinham tido direito a um ensaio geral contra o mesmo adversário na Taça da Liga, em parte porque o FC Porto poupou as suas armas mais poderosas para o clássico de domingo contra o Sporting, mas sobretudo porque são melhor equipa do que os lisboetas. Jorge Costa queria uma equipa “atrevida” e teve-a, pelo menos durante uma boa meia-hora. Nunca fez o que a generalidade dos treinadores de I Liga fazem contra os grandes, que é baixar os extremos para jogarem como segundos laterais, e acumular ali uma linha de seis atrás que se limita a procurar aguentar o embate. Não. O Académico de Viseu foi à procura do jogo, com Quizera e Ott sempre bem lá em cima, e com isso conseguiu tirar a profundidade ofensiva aos laterais do FC Porto. A dada altura parecia que os dragões tinham voltado a ser metidos no armário que já se lhes viu em alguns jogos desta época, nos quais os laterais não aparecem ofensivamente e o 4x2x2x2 se anula na sua falta de largura. A partir de determinada altura, porém, via-se que a renitência em encher a linha mais recuada com corpos ia criar problemas junto da baliza de Gril. Isto é da mais pura das aritméticas: se dividirmos os 66 metros de largura do campo por quatro corpos, cada um fica com uma área superior a seu cargo do que se dividirmos o mesmo terreno por seis. Isso contraria-se com movimentação constante, sempre a fechar o lado da bola, mas a questão é que a diferença de ritmo, mesmo entre as segundas linhas do FC Porto e as primeiras dos viseenses, ainda é significativa. E o golo de André Franco provou isso mesmo. Ott, nessa jogada, até perseguiu João Mário no movimento que o lateral fez até à linha, mas a bola voltou atrás para o cruzamento de Uribe e o espaço entre Tiago Mesquita e o central André Almeida estava muito alargado, permitindo que a chegada à área do médio fosse premiada com um golo de cabeça à frente de Toni Martínez, o destinatário natural daquela bola. O FC Porto seguiu em frente com justiça e o jogo foi até bastante interessante, a provar que quando as equipas querem a ópera é possível. E ontem as duas equipas quiseram.
Os pés inocentes de Rodrygo. Os adolescentes, já se sabe, são excessivos. Rodrygo não foge à regra, como se viu no golaço que meteu ao Atlético Madrid há uns dias e voltou a ver-se na obra de arte com que arrumou a meia-final do Mundial de clubes, contra o Al Ahly, fazendo o 3-1 e desenganando desde logo os egípcios. O que maravilhou ali não foi só o duplo toque de calcanhar, entre ele e Ceballos, que o deixou na cara do guarda-redes. Foi aquele excesso de descaramento com que ele simulou rematar de pé direito, deitando o guarda-redes, para depois rematar mesmo de pé direito, mas uma fração de segundo mais tarde. O mesmo pé direito que, em sucessão, a uma velocidade digna dos sapateados de Fred Astaire, há uns dias tirara da frente Witsel, depois Hermoso, depois Savic, antes de dar de bico na bola para bater Oblak, levando para prolongamento um dérbi da Taça do Rei que o Real Madrid complicara. Em Madrid, a vida não está fácil para Vinicius Júnior, a estrela maior dos brasileiros da equipa de Ancelotti. São os incidentes de racismo, as faltas que o inibem nos jogos longe do Santiago Bernabéu... Rodrygo tem sido capaz de capitalizar a situação, graças à inocência dos seus pés. A vê-lo jogar, ultimamente, lembro-me sempre de um verso extraordinário que foi parar, sabe-se lá como, a uma canção dos Wham: “Guilty feet have got no rhythm [Pés culpados não têm ritmo]”. E o pé direito de Rodrigo tem um andamento e uma inocência que fazem dele especial.
Blazevic, o último gigante. Morreu Miroslav “Ciro” Blazevic. A notícia era esperada, porque este antigo selecionador croata faria amanhã 88 anos e tinha cancro, mas ao mesmo tempo foi uma surpresa, porque parece que há uma classe de homens que vai sempre sendo capaz de fintar a morte com a mesma basófia com que viveu a vida. Com Blazevic vai-se um dos últimos, senão mesmo o último, gigante da classe dos treinadores “rock and roll”, uma classe que tornava mais interessante o futebol dos anos 70 e 80, à qual pertenceu gente como Brian Clough ou Tomislav Ivic. Eram os auto-intitulados mestres de tudo e mais alguma coisa, cheios de uma confiança ilimitada nas suas próprias capacidades – ou pelo menos na capacidade de fazer os outros acreditar que a tinham. Para a história só ficaram aqueles que, depois, eram mesmo bons no que faziam. Era o caso de Blazevic, um contador de histórias sem igual que nunca pude entrevistar mas com o qual me cruzei em conferências de imprensa, do Portugal-Croácia de 1996 ao Portugal-Bósnia do play-off de acesso ao Mundial de 2010. Blazevic dirigiu ainda a Suíça e o Irão, mas o que o deixou na história do futebol não foi a autoproclamada invenção do sistema de três defesas-centrais, que ele diz ter feito em 1981, mas sim o terceiro lugar obtido com a seleção croata no Mundial de 1998. Com três centrais, pois então. Muito da imagem que ainda hoje guardamos dessa equipa, dos Suker, Boban, Prosinecki ou Bilic, do bando de malucos que se juntava para jogar à bola, misturando fervor nacionalista com a paixão que só se mete nas peladas de amigos, tinha que ver com Blazevic e com as suas palestras motivacionais.