O que aprendemos na Eslovénia
Se os particulares servem para ver o que está mal e emendar, a derrota com a Eslovénia cumpriu os requisitos. Em Ljubljana, Martínez tirou ilações importantes no que respeita a dinâmicas e escolhas.
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A seleção nacional perdeu ontem, na Eslovénia, pela primeira vez desde que é comandada por Roberto Martínez e o jogo foi mais útil do que se pensa, porque permitiu tirar ilações de peso relativamente a questões táticas, a dinâmicas coletivas e a opções individuais. Há quem se centre no resultado para sobrevalorizar a queda na realidade de uma equipa que até aqui só tinha ganho, mas o próprio selecionador veio desvalorizá-lo. Não somos, assim de repente, uma equipa miserável, apesar de termos feito um jogo miserável. Pode haver debate acerca do que esteve na origem do pouco que a equipa mostrou ontem, se o sistema, as dinâmicas ou as escolhas, mas a mim parece-me que os três temas têm de ser vistos de forma integrada e de trás para a frente – primeiro as escolhas, depois as dinâmicas e por fim o sistema. E aquilo que o jogo mostrou foi uma inclinação forte para a decisão de declarar três imprescindíveis: há um Portugal com Bruno Fernandes, Bernardo Silva e Rafael Leão e outro, pior, sem eles. São estes os elementos sem os quais esta equipa não passa.
Um dos grandes problemas da seleção nacional ontem foi ter mantido as dinâmicas sem ter em campo os jogadores para os quais elas foram construídas. Sem Leão, em função do qual a equipa passou a ter o lateral-esquerdo a jogar por dentro, de forma a dar-lhe a ele a largura, manteve a dinâmica, exilando João Félix na linha ou forçando Vitinha a jogar por lá quando o atacante do FC Barcelona procurava o corredor central. Não funcionou. Sem Bernardo Silva e Bruno Fernandes, cujas trocas posicionais no centro do terreno aumentam a imprevisibilidade do nosso jogo e ajudaram a desbaratar tantas organizações rivais, o selecionador encarregou Otávio e Rúben Neves de fazerem a mesma coisa, mas apenas para ver que ambos estavam falhos de ritmo e intensidade e que nem um nem o outro conseguiam ir impor ao meio-campo a capacidade de encontrar espaços, seja através de uma aceleração em posse ou de um passe de rotura. Coisas que, de resto, nos bons tempos, tanto um como o outro já mostraram ser capazes de fazer, o que levanta a questão acerca da utilização de três jogadores da Liga saudita em simultâneo – o terceiro era Ronaldo. Poderá uma equipa jogar uma competição exigente como é um Europeu com três elementos em onze habituados ao ritmo mais baixo do futebol saudita?
A questão, porém, não se resume aos três craques que me parecem imprescindíveis à equipa. Há ainda o tema-Palhinha. Sem o médio do Fulham AFC, foi Danilo quem assumiu o papel entre os centrais na construção e, na fase defensiva, na atenção dada ao avançado contrário que mais caía nas entrelinhas. É curioso que Danilo tenha feito com Sesko exatamente aquilo que Palhinha fizera em Guimarães com Gyökeres, mas que no final do jogo a generalidade das apreciações tenha decretado que ante a Suécia Portugal tenha jogado em 4x3x3 e ontem com a Eslovénia o tenha feito em 3x4x3. Não jogou. A equipa utilizou o mesmo sistema tático: partiu do 4x3x3 para atacar em 3x2x5 e defender em 4x1x4x1. Simplesmente, nem Palhinha nem Danilo são o jogador ideal para a dinâmica criada. Em Guimarães, apercebendo-se da dificuldade de Palhinha para a construção a três ante uma equipa que pressionava a nossa saída baixa, Martínez decretou a mudança ao fim de um quarto-de-hora, repetindo o que tinha feito, por exemplo, no Dragão contra a Eslováquia, também com Palhinha a meio-campo mas com Dalot a defesa-esquerdo: mandou Nuno Mendes baixar em construção e fez a saída a três com os dois centrais (Pepe e Rúben Dias) e o lateral esquerdo, colocando-lhes à frente Palhinha e um dos médios, alternadamente. Em Ljubljana, seja porque a Eslovénia não fez pressão alta de cariz individual, seja porque Danilo é mais ágil a encarar o jogo de frente, o selecionador não mudou e voltou à dinâmica-base que usa desde a deslocação à Bósnia, com saída a três feita pelos dois centrais e o médio-defensivo a jogar entre eles, metendo depois na segunda linha de construção outro médio e o lateral-esquerdo, cujas diagonais o levam a jogar por dentro.
Como a memória das pessoas tende a ser curta, sobretudo em relação a estas minudências, a convicção que se generalizou foi a de que, primeiro, Portugal estava a jogar com três centrais – e não estava – e, depois, a de que o fazia para poder dar liberdade e um novo papel a João Cancelo – e não foi por isso. O papel de Cancelo, que Martínez também já atribuiu a Dalot e ao qual já recorre desde o Verão passado (como demonstrei no Futebol de Verdade Report de 18 de Outubro, que pode ver aqui, e como pode perceber pela imagem acima, que retirei do programa) não serve para lhe dar liberdade, mas sim para enquadrar as necessidades de um dos jogadores diferenciados desta equipa, que é Rafael Leão. Mas, tal como em Guimarães foi capaz de mudar a dinâmica para dar conforto a Palhinha – que fez um grande jogo contra a Suécia por não ter sido forçado a desempenhar funções que não são as ideais para ele –, ontem Martínez devia ter abdicado da dinâmica porque não tinha Leão e ela só estava a causar desconforto a muita gente, com destaque para João Félix e Vitinha, cujas necessidades de jogo interior pediam um lateral mais aberto que Cancelo também sabe ser. Aliás, na segunda parte, com a entrada de Francisco Conceição para partir da linha na direita, Portugal chegou a meter os dois laterais por dentro – Dalot entrava a partir da direita em diagonais para dar largura ao extremo – perdendo a oportunidade de manter a dinâmica, simplesmente trocando-a de lado. Isto é, de meter Dalot dentro, para dar a linha a Conceição, e abrir Cancelo, para permitir que Félix e Vitinha estivessem onde mais lhes convém, que era dentro do bloco. Nesse sentido, o jogo foi uma excelente oportunidade para se ver tudo o que Portugal não deve fazer em termos de dinâmicas. E foi, por isso, útil.
Creio que Martínez tem o sistema tático definido para o Europeu. Vai ser um 4x3x3. Mas para se definir os seus contornos tem de ter a flexibilidade de adaptar as dinâmicas aos jogadores que estão em campo – e, nisso, ele foi o primeiro a chumbar ontem. Nos 12 jogos que leva com este selecionador, e mais concretamente nos oito feitos desde que Martínez abdicou da linha de três centrais, a equipa já construiu o seu 3x2x5 ofensivo de duas maneiras. E a lista final de convocados deve ser pensada muito em função dos jogadores que venham a ser mais capazes de desempenhar as diversas missões nestas dinâmicas. Isto é: Martínez não vai levar “só” quatro laterais, dois esquerdos e dois direitos, como se pensava a coisa tradicionalmente, mas sim quatro laterais que preencham as diferentes quotas: teremos de ter laterais capazes de jogar profundos e abertos, outros capazes de jogar dentro para início de construção a três e outros ainda capazes de se converter em segundo médio para dar a largura ao extremo do seu lado. Portugal não deve levar “só” quatro extremos. Deve ter, em cada lado, um capaz de jogar aberto e outro competente a fazê-lo por dentro, de forma a fazer dançar a equipa: se tem Bernardo à direita, tem Leão a dar largura na esquerda; se tem Félix a procurar o meio na esquerda, tem de ter um extremo aberto na direita – e esse parece ser o lugar em aberto na convocatória final, ao alcance de Conceição, Neto ou até Trincão, e possivelmente à custa de um dos muitos médios que têm andado sempre por ali.