Passagem de testemunho
O FC Porto voltou a mostrar na segunda parte como contrariar o Sporting e a ser melhor do que o ainda campeão nacional. Cresceu. Cabe aos leões agora fazerem evoluir a ideia sem porem tudo em causa.
Há desportos, como o boxe, em que um novo campeão é celebrado no momento em que bate o anterior, na ocasião em que é consumada a passagem de testemunho e a euforia da vitória contrasta com o desalento da derrota. O futebol não tem de ser assim. Já tivemos campeões que se impuseram simplesmente por terem sido mais regulares e que nem conseguiram bater o anterior titular ou equipas que cedem títulos sem sequer perder jogos. Não deixarão de ser campeões e derrotados justos, mas é bem melhor quando as coisas se passam como este ano no futebol português. O FC Porto vai ser campeão, deu ontem um passo importante para poder festejar a dobradinha, qualificando-se para a final da Taça de Portugal frente à melhor equipa nacional da época passada, que foi o Sporting, mostrando no campo que foi superior e levando até o treinador adversário a reconhecê-lo – o que, sendo do mais natural que pode haver, não tem sido, infelizmente, prática comum.
Os jogos entre o Sporting e o FC Porto têm sido, futebolística e estrategicamente, do melhor que o jogo tem tido para nos mostrar em Portugal. Passámos de uma época com dois empates e uma vitória dos leões, em três jogos marcados por um enorme equilíbrio e pela frase que Sérgio Conceição deixou para nos ajudar a entender o clássico: “O Sporting de Rúben Amorim é fácil de entender mas difícil de contrariar”. Esta época, tivemos dois empates e duas vitórias portistas, em jogos nos quais as duas equipas deram passos em frente. Os leões foram mais fortes nos dois jogos de campeonato, mas empataram ambos. Ainda assim, isso deu razão às palavras de Amorim, que reclamou para a sua equipa uma boa dose de crescimento. “Somos mais equipa este ano”, repete o treinador leonino à exaustão. E são. Só que os dois jogos da Taça já contaram uma história diferente: depois de primeiras partes equilibradas, ainda que com um ligeiro ascendente leonino, tanto em Alvalade como no Dragão, o FC Porto cresceu para duas segundas partes em que mostrou que não só o entendeu como que já é capaz de contrariar o futebol que deu o título aos verde-e-brancos.
Ontem escrevi aqui sobre a necessidade de normalizar a derrota, porque cada Liga, cada Taça, só pode ter um vencedor e tem sempre muitos derrotados e o facto de se perder não tem de ser razão para se pôr tudo em causa. Ainda que, como bem repetiu ontem também Coates, o capitão do Sporting, estas sejam alturas em que a “auto-crítica” é fundamental. O FC Porto foi capaz de desmontar as razões pelas quais nunca era capaz de impor o seu futebol ao do Sporting de Rúben Amorim. Na primeira mão, em Alvalade, pedindo a Uribe que se colocasse entre os dois centrais em momento de organização defensiva, deu aos dois laterais mais capacidade para controlar a largura leonina em momento ofensivo, no qual Amorim mete sempre os três da frente e os dois alas. Na segunda, no Dragão, colocando três homens na primeira linha de pressão em bloco médio-alto – Evanilson, Fábio Vieira e Taremi, da direita para a esquerda –, cortava diretamente as linhas de abastecimento de bola em direção aos laterais leoninos, ao mesmo tempo que dificultava a saída por dentro, por Ugarte e Matheus Nunes. Isto não funcionou sempre, mas à medida que ia começando a faltar pulmão aos leões para se mexerem sem bola numa segunda linha e para aparecerem onde não os esperavam, foi permitindo ao FC Porto encostar atrás um adversário que até há pouco tempo não sabia contrariar.
O que a noite de ontem nos mostrou foi que os jogos também se ganham mudando. No fundo, é a repetição da “lição de Veríssimo”, de que vos falei aqui. Quando uma equipa tem noção de que não é capaz à sua maneira, experimenta outras. E o facto de estas duas vitórias do FC Porto contra o Sporting terem sido conseguidas com medidas estratégicas de contra-futebol – isto é, com alterações destinadas a contrariar o adversário – imediatamente fez sair debaixo das pedras os críticos de Rúben Amorim, acusado de jogar sempre da mesma maneira. Aliás, o treinador do Sporting disse no final do jogo de ontem que “se há equipa em Portugal que tem uma ideia de jogo bem vincada, é o Sporting”. E tem razão. O futebol do Sporting baseia-se em três ou quatro ideias – contra-movimentos entre profundidade e entrelinhas dos três da frente, largura dada pelos laterais no ataque e na defesa, atração do adversário a um dos lados para depois desequilibrar pelo outro, grande capacidade dos médios para queimar linhas em posse... – que a equipa vai repetindo à exaustão. A questão, lá está, vai sempre dar ao mesmo: a “auto-crítica” de que falava Coates.
O FC Porto fez essa auto-crítica, percebeu onde estava o problema e mudou comportamentos sem bola mas manteve a ideia nas dinâmicas ofensivas – aliás, aprimorou-a, mesmo perdendo Díaz, com a introdução progressiva de jogadores mais coletivos, como são Vitinha, Pepê ou até Fábio Vieira. Se o problema do Sporting está na necessidade de voltar a ser capaz de desequilibrar, provavelmente não precisa de mudar de ideia nem muito menos de sistema tático – acho piada, a sério, a quem diz que o Sporting perdeu porque precisava de mais um médio e de menos um defesa e que essa coisa dos três centrais não pode ser irredutível... Isso é só absolutamente irrelevante. Já quanto à ideia, que não é de todo irrelevante, ter uma é algo de tão precioso que não se abdica dela só porque sim. O que é preciso, lá está, como nos mostrou o FC Porto, é aprimorá-la, para desmantelar as contra-medidas adversárias. Onde é que o Sporting pode melhorar? Fisicamente, na capacidade para manter a rotação sem bola? Tecnicamente, na qualidade de saída com bola atrás? Taticamente, na introdução de homens mais criativos na zona de meio-campo? A próxima época no-lo dirá.
Eu queria deixar aqui um elogio ao Sérgio. Que treinador caramba.
O gajo em 5 anos soube sempre se adaptar perante os jogadores que tinha, e agora ainda estou mais de acordo com o António, que nos dizia no início da época que o grande desafio do SC esta época era realmente saber tirar o máximo proveito do talento, isso é que é trabalho de treinador ! Ontem podemos ver todo esse trabalho em campo, a forma como ele percebe e tem a capacidade de se adaptar ao adversário, ontem nem se notou a ausência de Uribe, e Luís Diaz ? Alguém fala dele ? viram o jogo do Pêpê a defesa direito ? Irrepreensível a atacar e a defender. Já para não falar da dupla F.Vieira e Vitinha, só quem não gosta de ver futebol é que não aprecia aquilo. Depois vem a intensidade que o SC conseguiu incutir nesta equipa, inesgotável, o Sporting parceria que tinha um muro e não dava para passar, seja por os lados seja pelo meio, impressionante. Isto para dizer que por mais que me custe admitir porque sou Benfiquista o Sérgio é muito bom treinador e vai ser ainda melhor.
Com esta qualidade e competência só posso lhe prever sucesso nos próximos anos e espero que possa chegar a grandes clubes europeus para nos provar isso.
Cumprimentos
Mais do que a eventual insistência num modelo que já foi descodificado pelo adversário, Amorim depara-se com a má forma de elementos que no ano passado foram simplesmente fundamentais. Não alinho na tese de que o Sporting só foi campeão porque descansou mais. Ganhou porque tinha um Pote a marcar a cada meia oportunidade, um Matheus Nunes superlativo, um Palhinha a encher o campo e um Porro a 100% fisicamente. Além de ter Nuno Mendes que combinava na perfeição com Nuno Santos. Neste ano o Porto foi melhor. Mas nem Sérgio Conceição passou a ser melhor treinador do mundo (não há muito tempo os próprios portistas vociferavam que ele não tinha argumentos para uma equipa como o Porto, era só garra e correria), nem Rúben Amorim passou a ser um flop teimoso de um só sistema. São ambos bons treinadores, sendo certo que Sérgio Conceição vai mais à frente na carreira e tem, necessariamente mais experiência. Em Conceição não gosto da recorrente alusão às arbitragens quando as coisas não correm bem. No ano passado, em todos os jogos que o Porto não ganhou lá vieram os queixumes. Neste particular, Amorim agradou-me mais, reconhecendo a superioridade do adversário. Mesmo na sua "semana Peseiro", mesmo que naturalmente aziado, conseguiu reconhecer mérito ao adversário. E Coates alinhou pelo mesmo discurso, falando na necessidade de análise do que a equipa fez mal. Faz falta este discurso. Para abafar o esgoto das propagandas clubísticas. De vencidos e de vencedores, que muitas vezes até conseguem ser piores