Para o ano é que é
À carreira de João Félix começa a aplicar-se cada vez mais ao aforismo com que os adeptos de FC Porto e Benfica gozavam com os do Sporting nos longos períodos de jejum leonino: “Para o ano é que é!”.

Palavras: 1527. Tempo de leitura: 8 minutos (áudio no meu Telegram).
João Félix está hoje em destaque na primeira página da Gazzetta dello Sport e a razão não é uma qualquer proeza conseguida em campo. Falhada a entrada no Chelsea de Enzo Maresca, onde praticamente só é titular nas taças, o talento português mais incompreendido da sua geração é agora apresentado como alvo de mercado do Milan de Sérgio Conceição, que já estará a ver que não pode chegar a Rashford, o alvo original, demasiado caro para a realidade da Serie A. O diário italiano desenvolve as razões para o interesse – sendo uma delas o facto de o jogador e o treinador serem ambos da “equipa Jorge Mendes” – e estimula em todos os que se lembram do melhor Félix, o que ajudou Bruno Lage a ganhar a Liga de 2019 no Benfica, a questão acerca do que ele precisa para voltar a esse nível de rendimento. Se quando optou pelo Atlético Madrid de Simeone foi travado pelo modelo de jogo, se depois não se impôs no FC Barcelona e agora atravessa dificuldades no Chelsea, necessitará ele de uma abordagem mais humana e personalizada como a que lhe deu Lage? E será Conceição, que o conhece bem desde miúdo, à conta da amizade que ele mantém com Rodrigo, filho do técnico rossonero, o treinador ideal para essa retoma?
O João Félix da primeira metade de 2019 não foi sequer um “one season wonder”. Foi um “half season wonder”, ainda assim absolutamente decisivo para o título do Benfica. Cinco vezes titular – mas só duas delas na Liga – até à derrota com o Portimonense que, a 2 de Janeiro de 2019, ditou o despedimento de Rui Vitória, o jogador tornou-se imprescindível para Bruno Lage logo a partir do primeiro desafio deste aos comandos, um 4-2 ao Rio Ave que ele começou de início e no qual marcou dois golos. Até final da época somou mais 30 presenças no onze, tornando-se a figura da “reconquista”, com 13 golos e seis assistências em seu nome a impulsionarem o Benfica para a transformação de um défice de sete pontos na Liga no mês de Janeiro numa vantagem de dois pontos em Maio. O rendimento levou-o à seleção nacional – estreou-se a 5 de Junho, contra a Suíça, na meia-final da Liga das Nações – e à transferência recorde, por 127 milhões de euros, do Benfica para o Atlético Madrid, finalizada por Jorge Mendes a 3 de Julho. Desde então, o debate centrou-se mais nas artes do seu agente para inflacionar o negócio do que nas razões para a chegada do jogador a um patamar inegável de excelência. As duas coisas são importantes, mas não têm nada que ver uma com a outra. Mendes conseguiu que o seu amigo Gil Marín pagasse pelo jovem mais do que ele valia? Sem dúvida. Seria importante perceber como ou porquê? Indiscutivelmente. Mas na justificação dessas respostas não há nada que possa explicar por que razão Félix jogou tanto naqueles seis meses de 2019 e não reapareceu àquele nível depois disso.
Félix fez seis golos e uma assistência no terceiro lugar do Atlético na Liga de 2019/20. Estava a pagar a pressão do que custou, a adaptar-se a uma nova realidade, era um miúdo e, ainda por cima, foi ano de pandemia, ouviu-se e leu-se. Em 2020/21 melhorou: marcou sete golos, fez cinco assistências e o Atlético foi campeão. Com um revés: foram mais as vezes em que saiu do banco do que aquelas em que começou no onze. Normal, dizia-se. E foi aí que passou a falar-se do erro da escolha. Não de um erro na opção do Atlético por Félix, que o jogador não se punha em causa, mas na opção de Félix pelo Atlético, equipa cujo modelo não seria o ideal para ele. Os mandamentos do “Cholismo”, a exultação da garra e de um jogo defensivo e mais direto não serviriam para alguém de tão fino recorte técnico, alegavam os que encontravam sempre mais uma razão para o falhanço do ídolo. Só que a teoria encontrou dois contratempos logo em 2021/22. Por um lado, com as mesmas ideias e o mesmo treinador, essa foi a época de maior rendimento de Félix em Madrid, com oito golos e quatro passes decisivos em 24 partidas na Liga, 13 delas a titular. Por outro, se o português não esteve mais vezes nos onzes de Simeone foi porque nele encontrou abrigo outro jogador do mais fino que podíamos ver: Griezmann, que chegou de Barcelona. O francês somou depois 15 golos e 17 assistências no terceiro lugar que o Atlético repetiu em 2022/23, época que Félix começou como titular mas na qual foi perdendo espaço até ao Mundial. E, mesmo com uma só presença no onze inicial do Atlético nos dois meses que antecederam o Campeonato do Mundo – a derrota com o FC Porto no Dragão, para a Champions –, Félix foi aposta firme de Fernando Santos no Qatar, em Novembro e Dezembro, começando quatro dos cinco jogos que a seleção por lá fez, todos menos a insignificante partida com a Coreia do Sul. Só ele e o seu agente saberão se isso foi mais uma motivação ou uma razão para o que se seguiu: o empréstimo ao Chelsea de Graham Potter.
Em Londres, apesar da expulsão no jogo de estreia, cumprido o castigo, Félix foi titular até meados de Abril. Nos últimos nove desafios da época que os Blues acabaram num modesto 12º lugar, contudo, só jogou de início mais uma vez. E foi devolvido. A equipa era fraca, havia muita desorientação, ouviu-se e leu-se. O contexto, mais uma vez, não era o ideal para que o jogador exprimisse todo o seu talento. Voltou a Madrid e foi emprestado mais uma vez, agora ao FC Barcelona. Modelo de jogo a condizer, de equipa de posse, associativa e ambiciosa no ataque, o Barça tinha tudo para que Félix vingasse. E os números não foram terríveis – sete golos e três assistências em 30 partidas, 18 das quais como titular – mas mais uma vez se viu um Félix com entrada de leão e saída de sendeiro. É que 13 das suas 18 presenças no onze em desafios da Liga aconteceram até ao Natal. Foi a incerteza acerca do futuro, o facto de ter de jogar por um clube que ele não sabia se ia apostar nele ou não, porque estava emprestado, ouviu-se e leu-se. Pois bem, também isso teve remédio: o Chelsea algo nele há-de ter visto, a ponto de adquirir o seu passe ao Atlético, que aceitou de bom grado a perda, vendendo por 52 milhões de euros um jogador que comprara por 127 e que, aos 24 anos, era demasiado jovem para ter desvalorizado tanto. O negócio fez-se a 21 de Agosto e, desde então, Félix foi nove vezes titular na equipa de Enzo Maresca – só que seis aconteceram na Taça da Liga, na FA Cup e na Liga Conferência, provas em que o italiano apresenta segundas escolhas. Joga na posição de Cole Palmer, para muitos o mais desequilibrador jogador inglês da atualidade, ouve-se e lê-se.
E é assim que surge a disponibilidade do Chelsea para ouvir propostas por ele. A Gazzetta fala do Milan, clube onde já “colocou” mais uma série de jogadores daquela a que chama a “equipa Mendes”, desde Trincão a Samu Costa ou Reyna. Há em Itália a noção de que nenhum clube da Serie A pode pagar o que cobra neste momento Rashford, algo como 13 milhões de euros limpos ao ano – e Félix, por exemplo, custaria pouco mais de metade desse valor. E mesmo que que o futebol de Sérgio Conceição seja muito mais próximo do de Simeone que do de Maresca ou de Xavi, treinadores que não foram capazes de tirar de Félix o que ele rendeu no Benfica de 2019, é quando me lembro daquilo que vi nessa altura que me volta à memória uma coisa que disse Bruno Lage no rescaldo desse título: “A primeira coisa que pensei foi: ‘Vou meter o miúdo’”. De repente, as razões para que João Félix tenha deitado cinco anos e meio ao lixo já não estão na inadequação ao futebol das suas equipas, na pressão do que custou ou na incerteza acerca do futuro, mas sim na relação de confiança que nele estabelecem os seus treinadores. Sérgio Conceição conhece-o como ninguém, que já o teve a passar férias lá em casa, à conta da amizade que ele mantém com o seu filho Rodrigo, antigo colega no Benfica, que hoje joga no FC Zurique. Mas esta será uma das últimas oportunidades que João Félix tem para deixar de motivar nos seus admiradores a repetição do aforismo com que os adeptos do Benfica e do FC Porto gozavam com os sportinguistas durante os longos períodos de jejum dos leões: “Para o ano é que é!” É que até o Sporting acabou por ser campeão um dia.
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O Félix é daqueles jogadores que pode ser o que não quer ser, como tivemos casos em Portugal, num preço mais baixo, como Matías Fernandez ou Jovane Cabral, por exemplo. Jogadores com grande talento, mas pouca vontade de trabalhar. Aqui com a agravante de que tem sido idolatrado por uma imprensa que quer vender elogiando o produto do clube com mais adeptos em Portugal, uma imprensa estrangeira que ainda lembra a venda milionária ao Atlético e fez dele uma estrela que nunca foi, treinadores iludidos como Roberto Martinez e benfiquistas fanáticos que não querem questionar um produto da sua formação e os parolos para quem um jogador que emigra é imediatamente bom e que quem cá fica não presta (também como Martinez, mas aqui falo dos adeptos Portugueses).
Os números falam por si no falhanço que tem sido Félix, por culpa própria e de mais ninguém, mas uma sorte descomunal na vida. Mas levamos com os argumentos falaciosos de sempre, de que Félix é um craque porque foi importante em três meses aos 19 anos ou que só com clubite se pode questionar a sua chamada à seleção e a sua qualidade.
Há muito tempo que Félix deixou de ser o talento mais incompreendido, para ser o mais fracassado da sua geração... E mesmo assim não lhe faltam oportunidades em grandes clubes e lugar garantido na Selecção. É o melhor exemplo do aforismo "mais vale cair em graça do que ser engraçado".