Pantufas, galochas e pitões de alumínio
Tanto se falou do clima, que o Sporting se terá sentido antecipadamente desculpado por não jogar. É a escola seguida por Conceição para justificar mais um empate com uma metáfora acerca de calçado.
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Na véspera da deslocação a Vila do Conde, onde Luís Freire montou uma bela equipa (e há mais sobre isso abaixo), Rúben Amorim teve de responder a mais perguntas sobre o vento e a chuva do que sobre aquilo que o Rio Ave já tinha feito neste ano ao Benfica e ao FC Porto, perdendo na Luz com muita infelicidade e levando um empate do Dragão. Amorim lá disse que tinha um Plano A para o caso de haver condições para se jogar e um Plano B para a eventualidade de a intempérie impossibilitar o futebol ofensivo mais trabalhado que os leões têm apresentado. No final, o que o empate nos disse (e há Flash do jogo para ver aqui) foi que aquilo para que os leões não estavam preparados era para o alongamento das suas próprias linhas a que a pressão vila-condense os obrigou, mais até por comodismo do que por uma necessidade real. Freire foi corajoso na forma como mandou pressionar a saída de bola do adversário, mas beneficiou muito da presença do tal Plano B no subconsciente dos jogadores verde-e-brancos, a quem a tempestade serviu de alibi para baterem a bola direta na frente. E não seria preciso fazê-lo, que nem a noite nem o campo estavam assim tão maus. Tenha sido por isso ou por ter perdido as saídas mais criteriosas de Gonçalo Inácio quando este deixou o jogo, magoado, ao intervalo, na segunda parte a linha de trás leonina nunca ligou com os médios, cedendo outra vez a um vício que chegou a ter no início de época mas que entretanto já erradicara, que é o de jogar direto em Gyökeres. E como tinha receio de ficar exposta à velocidade dos três da frente do adversário, sobretudo do explosivo Aziz e do hábil Úmaro Embaló, que Fábio Ronaldo explorava mais as entrelinhas, o Sporting aumentou demasiado as distâncias entre a primeira e a última linha, o que veio tornar impossível a ação dos seus médios, abandonados a si mesmos na imensidão de espaço em que decorria a disputa das segundas bolas que sobravam desses passes longos. Se quisermos ir buscar a metáfora usada por Sérgio Conceição para explicar o empate do FC Porto com o Gil Vicente, em Barcelos, o problema foi que o Sporting foi para os Arcos de galochas, preparado para a chuva mas não para o adversário e sobretudo não para defender a sua própria identidade. No final do jogo de Barcelos, que deixou os dragões a nove pontos do Benfica, disse o treinador do FC Porto: “É preciso não andar de pantufas a jogar futebol, mas andar de pitões de alumínio e com toda a atitude que é necessária para se ganhar jogos”. A explicação parece fraca e vem de uma escola de pensamento que depois bate mal com a riqueza estratégica que o próprio Conceição costuma dar à sua equipa. A este nível, está para nascer quem me convença de que os jogos se ganham e se perdem por causa da atitude, quanto mais não seja porque os jogadores que a não demonstrem não chegam a estar ali. Sim, Pepe é um exemplo, porque é suturado na cabeça e vai lá para dentro na mesma, mas as vitórias fazem-se de muito mais do que isso. Fazem-se, por exemplo, de uma clareza que o FC Porto desta época nunca teve em torno de quem devem ser as suas unidades criativas. E nelas tem de estar sempre Francisco Conceição, condenado a um papel de alternativa durante demasiado tempo quando a equipa se foi deixando atrasar, na primeira metade da época. A derrota em Arouca e os dois empates, em Barcelos e com o Rio Ave, justificam parte do atraso, mas os problemas, esses já vinham de trás e não são de arreganho.
O que vale o Rio Ave. Tenho-o dito sempre: este Rio Ave, como o Estoril, por exemplo, ou o FC Arouca, mesmo enquanto andava lá por baixo, jogam mais do que a classificação reflete. É certo que só há quatro pontos de distância entre a linha-de-água e a tranquilidade aparente de um oitavo lugar e que um par de sucessos pode mudar radicalmente a perceção que se tem de uma equipa, mas há ali algo que permite ao Rio Ave brilhar nos jogos com os grandes e que depois não se vê nas partidas contras equipas da mesma igualha – e esse é o problema de Luís Freire. O Rio Ave de ontem foi diferente da equipa de contra-ataque sempre apoiado que se tinha visto na Luz, a chegar à frente com números interessantes para as circunstâncias, ou do onze rigoroso a defender que surgira no Dragão, mas continuou a ser competente nos seus processos. Não foi só a capacidade de pressão na frente ou o arreganho dos três de trás na disputa de cada bola dividida, foi também a temporização colocada a meio-campo nos momentos com bola por Graça e Amine, que jogaram sempre redondo, e a diferença entre corredores, a tornar a equipa mais difícil de contrariar e suscetível de explorar as deficiências dos alas adversários. Mais cerebral o direito, com os movimentos de apoio de Fábio Ronaldo a abrirem a linha a Costinha, mais explosivo o esquerdo, com o um para um de Embaló e a criação de desequilíbrios desde trás de Vrousai, a pedir o adiantamento de Catamo, já para não falar na tendência normal de Aziz para cair por ali. Correndo tudo como é normal, este Rio Ave não é equipa para estar metida em lutas pela fuga à despromoção. Só tem de o mostrar com mais regularidade.
O erro do guarda-redes. Apesar do erro na temporização da saída que o levou a fazer o penalti e de outro que cometeu na primeira parte, aí sem consequências, Adán não foi o culpado do empate do Sporting, ontem. Mesmo que haja quem o faça, não se lhe pode exigir que defenda penaltis... A questão é que também não salvou a equipa, como já o fizeram várias vezes Trubin ou Diogo Costa. Os dados do GoalPoint mostram mais do que isso. Mostram que o espanhol, importante no título de 2021 e na candidatura séria de 2022, caiu muito. Não só é o guarda-redes com o rating médio mais baixo entre os 18 habituais titulares nas equipas da I Liga como é um dos cinco únicos que, entre a Liga Portuguesa e as Big Five, defendeu menos de 50 por cento dos remates enquadrados que lhe fizeram dentro da área. Não se trata aqui de colocar o espanhol no pelourinho, mas sim de enfatizar o que cada vez mais parece ser o grande erro do Sporting na abordagem a uma época que Amorim admite possa ser a sua última à frente da equipa e que as vozes de mercado apontam como podendo ser a única em que os leões terão Gyökeres. O grande erro de planificação do Sporting para esta época foi o de não antecipar que Adán já não estaria ao nível do resto da equipa, não apetrechando esta com um guarda-redes que pudesse ajudá-la. Dizê-lo não é crucificar o jogador. Não o dizer, mesmo que seja por uma questão de respeito, é ignorar o elefante na sala.
O ângulo de Kokçu. Andei o ano todo a dizer que Kokçu pode ser melhor no Benfica de Roger Schmidt a partir da dupla de médios-centro e, vai daí, ontem o alemão meteu-o a jogar mais à frente, nas costas do ponta-de-lança – que foi Rafa – e ele foi o melhor jogador em campo (e há Flash do jogo para ver aqui). Enganei-me? É possível que sim, ainda que um jogo não seja, nunca, suficiente para uma decisão final. Muito menos um jogo tão diferenciado como o que o Benfica fez ontem contra o Portimonense, equipa de bloco baixo permanente, de defender com muitos e sempre com duas linhas tão juntas que às vezes parecem uma só, que levou Schmidt a ter sucesso até com o ataque sem um só dos seus vários pontas-de-lança e com Rafa a incorporar mais uma vez o “nove” móvel, sem uma referência frontal que lhe permitisse receber de frente e acelerar com a bola. O próprio médio turco disse no final que é mais feliz ali, perto da baliza do adversário, do que a meio-campo, mas é bom que se olhe para o jogo e se perceba que foi quando baixou para poder ter visão panorâmica sobre o campo que ele mais se destacou. A questão é que por vezes nos esquecemos que o futebol é um jogo dinâmico, que se pode jogar atrás e chegar à frente da mesma forma que se pode jogar à frente e vir cá atrás à procura do melhor ângulo para ver o jogo. Foi disso que Kokçu nos lembrou ontem.
Nada como um fraco jogo do SCP para o excelente jogo do FCP passar incólume