O aliviado e o irritado
O Benfica saiu de França aliviado com o empate que lhe permite enfrentar o Rangers. O Sporting ficou irritado com o desperdício e com a necessidade de voltar a defrontar a Atalanta.
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O Benfica e o Sporting saíram do play-off de acesso aos oitavos-de-final da Liga Europa com o mesmo resultado mas sensações tão diferentes entre eles como as que certamente terão enfrentado depois, ao saberem que adversários lhes calharam em sorte. Um pouco de alívio do Benfica face ao 0-0 com o Toulouse FC e de irritação do Sporting com o 1-1 ante o Young Boys. O mesmo alívio com que os encarnados viram o nome do Rangers sair da bola aberta por John O’Shea no sorteio de hoje e a mesma irritação com que os verde-e-brancos ouviram ler o nome da Atalanta na mesma ocasião. Melhor ou pior, o playoff já lá vai. Benfica e Sporting seguem em frente com uma vitória e um empate porque são melhores equipas do que o Toulouse FC e o Young Boys, mas é indiscutível que tanto uns como os outros podiam e deviam ter dado mais nos jogos de ontem (e há Flash das duas partidas, para ver aqui ou então aqui). O Benfica sofreu demais na segunda parte de uma partida em que, a partir de certa altura, deixou o seu meio-campo ser dominado pela dupla de médios adversários, em grande parte porque não era sequer capaz de ter bola. As saídas pelas laterais esbarraram na tarde desastrada de Bah, Morato e, depois, Carreras, o jogo mais vertical nas exibições apagada de Tengstedt e apática de Cabral. Para ter sucesso na prova, o Benfica precisa de jogar mais do que nos dois desafios com os franceses, porque apesar de ser uma das duas possibilidades mais apetecíveis no sorteio de hoje, o Rangers é uma equipa intensa e em crescimento, além de ser um grupo concreto, que em nenhuma ocasião desperdiçará tantas oportunidades de finalização como as que perdeu ontem o Toulouse FC. Quanto ao Sporting, pôs a eliminatória a salvo bem cedo, com um golo a elevar a vantagem agregada para 4-1, mas depois deixou-se encantar pelo canto das sereias que mandaram baixar o ritmo à medida que se ia rodando a equipa – e este era, bem entendido, o único jogo deste ciclo de Março em que podia fazê-lo, que na Liga teve pela frente a saída a Moreira de Cónegos e terá agora outra a Vila do Conde. Tal como Roger Schmidt optou por doirar a pílula e destacar que se atingiram os objetivos, Rúben Amorim até negou aquilo que estava à vista de todos, a tal diminuição de intensidade, porque mesmo a baixar a concentração sem bola e sem meter tanta variabilidade como é costume no seu jogo, os leões podiam e deviam ter marcado mais três golos antes de sofrerem o do empate. E a irritação pelas ocasiões flagrantes perdidas bem pode ter-se prolongado com o sorteio de hoje, que ditou mais dois jogos com essa máquina de chatear que é a Atalanta de Gasperini. É verdade que os leões melhoraram muito na forma de enfrentar marcações de raiz individual: foram atropelados na primeira parte com a Atalanta em Alvalade, equilibraram na segunda e até foram melhores no jogo em Bergamo (ainda que este com a nuance de o nulo na altura ser suficiente aos italianos para garantirem o primeiro lugar do grupo). Da mesma forma que passaram da derrota na meia-final da Taça da Liga para uma goleada na Liga ao mesmo SC Braga das referências individuais de marcação. Mesmo assim, com tanto jogo no calendário, certamente que o Sporting daria muito pela hipótese de lhe calhar um adversário mais tenrinho. É que com esta Atalanta uma coisa é segura: sucesso, só com 180 (ou até 210) minutos sempre a abrir.
O valor da Liga Europa. Uma das questões que coloquei a Tobias Hedtstück, o responsável de competições de clubes da UEFA que esteve em Lisboa para explicar a nova Liga dos Campeões, estava relacionada com as verdadeiras razões para o peso que as competições menores – Liga Europa e Liga Conferência – tinham no ranking. Creio e já o escrevi que é uma questão política, que a UEFA quer isso, porque essa é a forma de valorizar uma segunda linha de clubes. E não é tanto porque queira ser justa e ajudar os clubes pequenos e médios, mas sobretudo porque percebe que a manutenção da competitividade interna é a única forma de travar os grandes no desejo de secessão para formarem a tão temida Superliga. Hedtstück perguntou-me qual seria, do meu ponto de vista, a valorização ideal dos pontos obtidos na Liga Europa face aos que se conseguem na Champions. E eu respondi-lhe com outra questão: “quer saber o que as competições valem ou o que seria justo que valessem?” Neste momento, a lei do dinheiro faz com que muitos clubes desprezem a Liga Europa, porque a receita que ela lhes dá é curta – e continuará a sê-lo, porque os sponsors e as televisões querem saber, sobretudo, dos choques entre grandes. Mas há uma retoma interessante em curso. Dos oito confrontos do play-off da Liga Europa, seis foram favoráveis aos segundos classificados nos grupos da prova secundária e só dois dos terceiros classificados dos grupos da Champions – Milan e Benfica, contra Stade Rennes e Toulouse FC – é que seguiram em frente na competição. Inverteu-se por completo o que se passara nas últimas duas épocas (sempre 5-3 a favor dos clubes vindos da Liga dos Campeões). A despromoção de uma prova para a outra acaba este ano, mas se isto é um sinal, é um bom sinal.
O desalento de Artur Jorge. É verdade que foram dois momentos de desconcentração a custar ao SC Braga dois golos na baliza de Matheus, quando a equipa minhota chegou a ter tudo a seu favor para vir a marcar presença nos oitavos-de-final da Liga Europa, mas talvez seja um pouco redutor olhar para o jogo de Baku apenas nessa perspetiva (e há Flash para ver aqui). Porque o Qarabag FK foi melhor na primeira parte, podia ter acabado com o sonho braguista de recuperação nesse período e só perdeu o ascendente que criou a partir de uma intensidade extraordinária quando o lateral Gafarguliev se fez expulsar com duas faltas tontas em quatro minutos. Percebo o desalento final de Artur Jorge e nem sequer é possível achar que ele quis culpar um jogador em específico quando falou em “erros individuais”, uma vez que eles foram tantos que se tornaram norma coletiva. Se atentarmos no lance do segundo golo azeri, aquele que acabou sem remissão com a possibilidade de o SC Braga marcar presença no sorteio dos oitavos-de-final, quem é que errou? Errou Ronny Lopes, que fez uma falta a meio-campo e ficou a lamentar-se aos céus em vez de manter a concentração. Errou Ndour, que estava à frente da bola e deixou que Huseynov marcasse o livre de forma rápida, isolando Akundadze na direita do ataque. Errou Djaló, que foi driblado pelo jovem azeri antes de este bater para as redes de Matheus. No limite, errou Artur Jorge, que com o objetivo de marcar os dois golos que lhe faziam falta ante um adversário reduzido a dez, descompensou a equipa com trocas, não em termos posicionais mas nos comportamentos. Não se pode ter em campo dois pontas-de-lança e quatro extremos e esperar que eles se comportem como defesas-centrais ou como os mais ferozes laterais de marcação.
E o adeus ao outro Artur Jorge. Morreu ontem Artur Jorge, que aqui, no F80 que há pouco mais de dois anos lhe tinha dedicado, considerei a – ou pelo menos uma das – personalidade mais completa da história do futebol português. Jogador de classe, finalizador de excelência, foi internacional e campeão nacional, mas também líder e figura incontornável na revolução que permitiu acabar com esse aborto que era a Lei da Opção, forma de manter os futebolistas debaixo de uma espécie de escravatura privilegiada. A esse já não o conheci, mas ainda tive o gosto de privar com o Artur Jorge treinador, aquela figura que tinha sido campeão europeu no FC Porto, na qualidade de sucessor escolhido por Pedroto, mas a quem o cosmopolitismo das aventuras parisienses, no Matra Racing e depois no Paris Saint Germain, proporcionara a elevação a um elitismo que se refletia não só no discurso de doutorado em línguas, cheio de muletas de ponderação – o “se você quiser” ficou na história do futebol português – como na possibilidade de se tornar colecionador de arte ou em alguns tiques de superioridade, como a mania de proclamar que via futebol ao mesmo tempo que ouvia música clássica. A imagem de Artur Jorge foi muito prejudicada em Portugal pelo duplo falhanço no Benfica – é que na Luz ele falhou nos resultados, na forma como destruiu uma equipa que tinha sido campeã à base da união do balneário, como falhara antes no modo como aceitou suceder a Toni, seu antigo colega de luta de classes, despedido depois de ter ganho o campeonato dos 6-3 (em 1994). A partir daí, as coisas nunca mais foram iguais. Mesmo antes do escrutínio insano que agora nos fazem as redes sociais, Artur Jorge foi exibido no pelourinho por ter tido um tumor no cérebro, que lhe interrompeu o trabalho na Luz uns meses depois de ter lá entrado, no dia em que a equipa seguia viagem para Split, e acusado em surdina de ter perdido as faculdades que lhe haviam permitido ser três vezes campeão nacional ou o primeiro técnico português a ganhar a Taça dos Campeões Europeus. Tal como foi visto como réu da cena em que, já como selecionador nacional, foi agredido a soco por Sá Pinto, em 1997. Depois de falhar o Mundial de 1998 – e foi, até à data, o último selecionador nacional a fracassar nesse objetivo –, Artur Jorge ainda trabalhou por mais uns anos, incluindo uma passagem por um PSG que andava pelo meio da tabela em França. Tinha 53 anos e acabava ali o trajeto de treinador de elite. Os últimos anos, sim, foram consumidos por uma doença cruel, que o impedia até de saber quão importante foi. E foi.
Caro António Tadeia, uma pergunta: o que era essa lei da opção? Os clubes tinham opção pelos jogadores, mesmo que estivessem em final de contrato?