Os vistos e as cruzes de Martínez
São muito mais os pontos positivos do que os negativos nos nove meses do selecionador. Mas há um risco de cristalização do grupo que pode ser muito perigoso, como se viu já em ocasiões anteriores.
Portugal pode obter hoje o apuramento mais prematuro da sua história para uma fase final. Se ganhar à Eslováquia (19h45, RTP1) no Dragão, dá-se ao luxo de deitar fora os últimos três jogos da fase de qualificação, o que não tem que ver apenas com a implosão do bloco de Leste e o consequente enfraquecimento das suas representantes ou de haver cada vez mais equipas qualificadas para as competições e de, em consequência, os grupos se terem transformado numa espécie de passeio para os mais apetrechados. Há muito mérito de jogadores e equipa técnica neste percurso sem faltas, nas seis vitórias em seis jogos com que aqui chegamos, nos 24 golos marcados e no facto de ainda não termos encaixado um só, quando já defrontámos os cinco adversários, um deles (o Luxemburgo) duas vezes. Não sendo o único, a orientação para a performance é um dos pontos indiscutivelmente positivos nos nove meses de trabalho do selecionador que rendeu Fernando Santos depois da eliminação nos quartos-de-final do Mundial do Qatar e da frustração que foi a derrota com Marrocos, num jogo que apanhou o selecionador entre duas ideias antagónicas – a de se meter nas mãos de Cristiano Ronaldo, que presidiu à sua liderança até ao famigerado “Estavas com uma pressa do c... para me tirar” que as câmaras de televisão sacaram ao capitão no irrelevante desafio com a Coreia, e a de fazer uma equipa sem ele, que começou a assaltar-lhe a mente a partir daí. Isso já é passado e pouco me interessa agora se o correto teria sido continuar a apostar no CR7, mesmo estando ele numa fase estranha da vida e da carreira, ou pura e simplesmente ignorar que ele existia a partir de certa altura. Pós-Mundial, todos têm razão, os que defendem uma tese e os que advogam a sua contrária, quanto mais não seja porque não há maneira de os convencer do contrário. A minha ideia é a de que é perigoso dependermos de alguém em exclusividade. Se o selecionador tem mais pontos positivos, mais vistos verdes no seu trabalho – e nem deve ser desprezado o esforço que fez desde o primeiro dia para falar publicamente em português e não no seu castelhano que todos entenderíamos perfeitamente –, o entrincheirar em torno de um grupo exclusivo que tem vindo a promover é claramente a grande cruz vermelha dos seus nove meses de trabalho. Para os jogos com a Eslováquia e a Bósnia, Martínez chamou os mesmos 24 jogadores que tinham estado ante a mesma Eslováquia e o Luxemburgo, no mês passado, limitando-se a acrescentar-lhes o jovem João Neves e o frágil Guerreiro, que então não estava disponível – e agora volta a não estar. E já os 24 que convocou para os desafios de Setembro tinham sido os 26 que tinham estado em Junho contra a Islândia e a Bósnia, sem os magoados Pepe, Guerreiro – mais uma vez... – e Renato Sanches e com o acrescento de Pedro Neto, que vinha de lesão. Quer isto dizer que em três das quatro listas que fez, Martínez chamou um total de 28 jogadores: os 26 de agora mais Pepe e Renato Sanches. Ao todo, o lote sobe a 32, se incluirmos Diogo Leite, Nuno Mendes, João Mário – que entretanto se autoexcluiu – e Matheus Nunes, presentes logo na primeira convocatória de Martínez, em Março, mas ignorados depois disso. Roberto Martínez já foi confrontado nas conferências de imprensa com esta crescente cristalização da sua lista de convocados e ainda ontem voltou a explicar as razões pelas quais não chamou agora ninguém para substituir Guerreiro ou Ricardo Horta, que caíram da lista por lesão. Disse que já só tinha aumentado a convocatória de 24 para 26 nomes porque havia a indicação de que dois podiam ser forçados a sair. “A lista dá uma ideia muito clara de como queremos jogar”, acrescenta. Que ideia? A de que chamamos um lateral esquerdino mas se ele está lesionado não precisamos de mais nenhum? Ou a de que não temos mais nenhum com o nível necessário e portanto mais vale ir sem um? Há quem veja clareza nas escolhas recorrentes de Martínez. No facto de só querer ter com ele dois pontas-de-lança (Ronaldo e Ramos) negando a qualquer outro sequer a possibilidade de o convencer nos treinos de que “nasceu para jogar na seleção”, como ele agora disse de João Neves. Na insistência em não querer chamar um médio capaz de saltar linhas em posse pelo abrir da passada com bola a não ser que tenha Renato Sanches, ostracizando Matheus Nunes. Na recusa da convocatória de Pedro Gonçalves por ter um perfil semelhante aos de Bernardo, Horta ou Félix, tornando-se por isso redundante no contexto de seleção, mas depois não dar uma oportunidade a Bruma, o jogador que mais se assemelha a Leão pela forma como sai da esquerda para finalizar – ainda que sem a mesma potência física, é certo. Na ausência de um lateral esquerdino ou de um central esquerdino além de Gonçalo Inácio. Como digo, há quem veja clareza nestas opções – e isso não é mau. A mim cheira-me mais a limitação auto-infligida, como a que Fernando Santos impôs a si mesmo quando decidiu que a seleção era sempre Ronaldo e mais dez, o que o deixou sem chão quando um dia percebeu que tinha de abdicar do capitão. Esse é o problema das ideias fixas: deixam-nos sem alternativa, como deixaram o mesmo Martínez quando o núcleo duro com o qual levou a Bélgica ao topo do ranking mundial começou a falhar-lhe. Acho que uma seleção deve ser gerida de acordo com a criação de um espírito de clube e sempre recusei essa ideia segundo a qual devem ser chamados os melhores do momento. Não é possível fazer uma equipa assim, com tanto entra e sai. Mas se em cada lista há 24 ou 25 jogadores, eleger um núcleo duro de 15 ou 16, vamos lá de 18 ou 19, tem de ser suficiente para transportar o espírito de convocatória para convocatória, permitindo ter prontos a entrar mais do que os 24 de sempre em caso de necessidade e impedindo que, se vierem a ser chamados num caso de emergência, esses novos elementos apareçam como corpos estranhos. Impedindo que a equipa cristalize em cima de quem um dia pode falhar-lhe, como aconteceu ao Portugal de Santos com Cristiano no Mundial.
A flexibilidade tática. Outro dos pontos positivos da seleção de Martínez é a sua flexibilidade tática. O selecionador surpreendeu toda a gente nos últimos dois jogos ao abdicar do 3x4x3, apostando numa multi-estrutura com dois centrais apenas, linha de quatro atrás no momento defensivo, saída de bola a três através do recuo do médio defensivo e inclusão do lateral esquerdo no corredor central a dar linhas de passe por dentro. Chegou para ganhar à segunda melhor equipa do grupo e para momentos de brilho na goleada ao Luxemburgo, a maior da nossa história. Mas a equipa sofreu em Bratislava como ainda não lhe tinha acontecido antes. Creio que Portugal vai repetir a experiência hoje, contra a mesma Eslováquia, e estou muito curioso face às opções que o treinador vai assumir. Se volta a abdicar de um pé esquerdo no início de organização ofensiva, cortando-lhe uma via de saída. Se volta a insistir no recuo de Palhinha, pouco ágil nas ligações curtas, ou se em contrapartida testa uma nova maneira de fazer as coisas, recorrendo à inteligência tática de Dalot – que se pode ser lateral e médio-centro também poderá ser lateral e defesa-central, integrando ele a base de suporte da saída de bola portuguesa a partir da esquerda.
Tanto talento desperdiçado. Nicoló Zaniolo é provavelmente o talento mais desperdiçado do futebol mundial neste momento. Vi-o fazer coisas maravilhosas como adolescente na AS Roma de Di Francesco, Ranieri e até Paulo Fonseca, que foi quando se começou a perceber que aquele cocktail da mãe “influencer” com os tiques de jovem prodígio tinha tudo para dar errado. Veio a lesão grave, a aparente falta de profissionalismo na sua resolução e um ano sem jogar até à chegada de Mourinho. Este ainda o convenceu por algum tempo, mas acabou por perder a paciência com ele e recambiou-o para o Galatasaray. Na Turquia, Zaniolo foi um autêntico “cheat code”, a resolver jogos a favor do Cimbom. Mesmo assim saiu, para o Aston Villa. Esta época ainda não fez um golo ou uma assistência e foi agora corrido do estágio da seleção italiana juntamente com Sandro Tonali – outro que tem muito que se lhe diga, como se percebeu quando foi a San Siro com a camisola do Newcastle e se desfez em juras de amor ao Milan – por alegado envolvimento em apostas ilegais. No caso de Zaniolo, é pena. Vi poucos jogadores com a capacidade dele para meter o talento na velocidade. Mas para isto do futebol a cabeça faz muita falta.