A inteligência e o compromisso
Ronaldo coloca a seleção acima de tudo. Até do aniversário da filha. Mas há quem não tenha o compromisso dele e comece a pensar no que perde na seleção. E o que me espanta é que ainda sejam poucos.

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Estava Cristiano Ronaldo a dizer, na Gala das Quinas de Ouro, organizada pela FPF, que ficava “dececionado” quando alguns colegas renunciavam à possibilidade de representar a seleção nacional, compromisso que, vejam só, até o levou a faltar ao sétimo aniversário da filha Alana, quando Lee Carsley, selecionador inglês interino, se viu a braços com uma deserção em massa, que o forçará a apresentar uma equipa pouco mais do que experimental, amanhã, na partida de Atenas em que vai lutar pelo único resultado que lhe permitirá sonhar com o regresso direto à divisão principal da Liga das Nações – a vitória sobre a Grécia. Foram oito os jogadores ingleses que se puseram fora deste compromisso, o que alguns ‘spin doctors’ imediatamente consideraram que era sinal de que os calendários estão congestionados, outros de que a federação falhou ao não impor o ingresso imediato de Thomas Tuchel como selecionador – ele só começará a trabalhar a 1 de Janeiro – mas que, bem vistas as coisas, é sinal de algo evidente e mais lato: de que não está fácil coordenar tudo e que é mesmo urgente encontrar um paradigma diferente, a permitir que os jogadores possam encarar os desafios todos que lhes surgem pela frente com o mesmo grau de resolução com que Ronaldo explica à filha que para o ano vai lá estar – se não tiver jogo, claro...
Sendo verdade que me intriga a quantidade absurda de roturas de ligamentos que temos tido no futebol de alto nível – e não sei mesmo se o risco de elas acontecerem aumenta apenas de forma proporcional às vezes que os jogadores entram em campo ou se há aí algum efeito exponencial... –, é preciso ter em conta que parte das deserções no campo inglês se deveram a lesões e não são mais estranhas do que as quedas de Pedro Gonçalves e Matheus Nunes da lista da seleção portuguesa. Rice e Saka saíram magoados antes do fim do jogo que o Arsenal fez com o Chelsea, no domingo. O mesmo aconteceu a Alexander-Arnold na vitória do Liverpool FC contra o Aston Villa, no sábado. A chamada de Grealish já tinha sido uma bizarria, que o jogador ainda não foi dado como apto pelo Manchester City, por quem já não joga desde 20 de Outubro, tendo falhado os últimos seis compromissos. Aliás, Guardiola foi cáustico quando lhe perguntaram pela convocatória do extremo: “Pelos nossos padrões, não está apto, mas se querem levá-lo, façam favor”, disse o catalão, em demonstração clara de que os dois lados não estavam na mesma página. De qualquer modo, o guarda-redes Ramsdale (do Southampton), o defesa-central Colwill, o médio ofensivo Cole Palmer (ambos do Chelsea) e o atacante Foden (do City) estiveram até ao fim nos jogos que os clubes fizeram na última ronda da Premier League e também se declararam indisponíveis para a seleção. E já se especula na imprensa britânica que, sobretudo se a equipa não ganhar em Atenas, perdendo as hipóteses de assegurar o regresso direto à Liga A, serão ainda mais as desistências antes do jogo de domingo, a receção à Irlanda em Wembley.
A razão oficial para esta debandada é a mesma em todos os casos: os jogadores não estarão em condições físicas para jogar. As oficiosas são muitas. Desde a sobrecarga de calendário, que em tempos levou os ingleses a falar da possibilidade de uma greve, até à decisão da FA retardar para Janeiro a entrada em funções de Thomas Tuchel, que teria posto como condição concentrar-se apenas na qualificação para o Mundial de 2026. Se vem aí um patrão novo e já se sabe que o atual está a prazo, não é terrivelmente anormal que os funcionários estejam a guardar-se para se mostrarem ao tipo que interessa e esvaziem a dose de empenho devida ao interino. Seja como for, já começa a entrar na cabeça de jogadores, treinadores e adeptos uma ideia de que a seleção é um pouco um empecilho. As renúncias já não são apenas de quem joga poucas vezes, como foram os casos de Rafa ou João Mário, por exemplo. Aursnes, titular da Noruega nos dez jogos que a equipa fez em 2023, abandonou a seleção no início deste ano, para “dar prioridade a outras coisas na vida”. A última edição do Futebol de Verdade teve um exemplo interessante desta forma de ver as coisas, quando João Costa, um subscritor que é adepto do SC Braga, comentou que se Gonçalo Inácio jogou os últimos dez minutos do jogo do Sporting contra a sua equipa é porque está apto e, nesse caso, não se entende a dispensa da seleção de Roberto Martínez, ainda por cima já privado de Rúben Dias. Geralmente eram os adeptos do Sporting a reclamar a convocatória dos jogadores das suas cores, mas neste caso é bem provável que a maioria tenha ficado satisfeita por Inácio poder ser mais um ao lado de João Pereira quando este começou a trabalhar, substituindo Ruben Amorim à frente da equipa. Porque – e Amorim ainda recentemente disse isso acerca de Morita, por exemplo –, a cada vez que se mete uma pausa para as seleções, as equipas que têm mais jogadores convocados veem interrompido por duas semanas todo o trabalho de consolidação do modelo, além de que quando se trata de jogadores de continentes que não o europeu, estes são sujeitos a longas viagens, que lhes afetam o rendimento nos dias após o regresso. Ora como isto há-de ser também verdade quando visto do ponto de vista dos selecionadores – ponham-se na pele de um selecionador que acolhe um plantel de 25 ou 26 jogadores, a esmagadora maioria deles vindos de um fuso horário totalmente diferente, e têm de os fazer render em campo um par de dias depois – há uma coisa que é evidente: este sistema não é bom e a sua substituição é das coisas mais urgentes no futebol dos dias de hoje.
A mim, francamente, o que me espanta é que ainda haja tantos jogadores a resistir à atração de uma pausa competitiva de duas semanas em nome do orgulho de representar a sua seleção nacional. Os jogadores são colocados ante motivações importantes mas ao mesmo tempo conflituantes. Querem jogar na seleção, entendem que não podem querer estar num Mundial ou num Europeu, numa Copa América ou numa CAN, se se mostram indisponíveis para jogos com menos visibilidade, mas ao mesmo tempo sentem que a disponibilidade para todos os compromissos os prejudica num e noutro campo. O caso de Morita é evidente, a ele podem juntar-se o de Otamendi, o de Diomande na época passada – quando voltou da CAN, onde ainda por cima jogou pouco, viu o rendimento baixar de forma abrupta e demorou a recuperar a titularidade no Sporting – ou o de qualquer dos brasileiros do FC Porto quando os chama o escrete. Do que se trata, aqui, não é de beneficiar clubes ou seleções. É de, mesmo não comprando as narrativas da exploração de toda uma classe que fazem as delícias de quem espalha a palavra da Premier League, por exemplo, criar as condições para que os jogadores possam ser melhores num e noutro lado. Aqui há uns 20 anos lancei em artigo a hipótese de se reduzir o total de pausas para seleções, aumentando-lhes a duração, concentrando os jogadores em dois períodos mais intensos mas ao mesmo tempo mais demorados, um ao serviço dos clubes, de Agosto a finais de Março ou meados de Abril, outro nas seleções, que iria de Abril a Junho. Não é um compromisso fácil, porque seria preciso ver como é que os clubes sobreviveriam sem competição – logo, com menos receita, tanto direta como indireta – em quatro dos 12 meses de cada ano. Mas é um compromisso para o qual tem de se dirigir a inteligência de quem pensa o futebol e o vê hoje numa perspetiva tão selvagem como se estivéssemos na corrida ao ouro do século XIX na América do Norte. É cada um por si.
Faltar ao aniversário da filha para ir a uma gala da FPF é para mim aberrante e até humanamente questionável. Não faz nenhum sentido.
Nunca tive essa visão patriótica da seleção nacional e acho mesmo que a esmagadora maioria dos jogadores não terá essa visão romântica. Tem tudo muito mais a ver com a valorização que daí vem do que da questão patriótica, ou não teríamos tanto jogador que se naturalizou para jogar mundiais e europeus por outras seleções, por na sua não caberem. Não falo das naturalizações "naturais" do jogador que passa a vida num país e se sente nacional desse país, obviamente.
Claro que no caso de Ronaldo, e de jogadores que alcançaram esse estatuto, a questão já poderá ser de gosto, patriotismo ou mesmo vaidade, Ronaldo parece-me ser daqueles jogadores como Romário que fará tudo para chegar aos mil golos só para dizer que o conseguiu. Mas seja pelo que for, tal como a pessoa que olha para a topa como um serviço ao país, ou que entende que outra pessoa tem de ser patriota, terá de respeitar quem não o veja assim, não lhe caberia julgar quem não quer representar a seleção.
FIFA e UEFA, se tivessem alguma moral, deveriam falar uns com os outros para alcançar um acordo para um calendário mais humano e executável, de forma a evitar situações como a de quem não quer ir à seleção para ter mais tempo para si, ou de casos maus absurdos como o de Otamendi, e principalmente na defesa da saúde dos atletas mas...os dirigentes querem a sua fatia do dinheiro acima da saúde dos atletas...e enquanto assim for...