O triângulo clubes-jornalistas-público
Sérgio Conceição e Nuno Dias foram abertos na palestra da ANTF mas isso não foi relevado pelo jornalismo, porque o público, condicionado pelo que lhe é servido pelos clubes, não está habituado a tal.
A nossa perceção da realidade é cada vez mais marcada pelo que nos é servido sobre ela. E, infelizmente, o que nos é servido no dia a dia sobre futebol é marcadamente negativo, muito por culpa de quem mais devia bater-se por tornar o ambiente mais saudável, no sentido de proteger o negócio: os clubes. Fiquei a pensar nisso quando fui um pouco além da espuma das primeiras páginas e li os relatos acerca da conferência que Sérgio Conceição e Nuno Dias, treinadores de futebol e de futsal do FC Porto e do Sporting, deram em conjunto no fórum da Associação Nacional de Treinadores de Futebol, ontem, em Leiria. A coisa teve piada, teve aspetos técnicos, táticos e de liderança muito interessantes, mas o que dali saiu para o grande público foi sobretudo o mais negativo: que os adeptos odeiam quem não ganha. É preciso entendermos que a necessidade de ganhar a qualquer custo, favorecida por uma competição nacional em que não há espaço para falhas, também tem estas facetas, mas depois cabe aos clubes perceber que há outro lado. E privilegiá-lo às tentativas de condicionamento feitas por ‘apparatchiks’ a espumar da boca de raiva pelo diverso.
Quem já está condicionado por anos desta lógica de ódio ao diferente olha para a coisa e vê nela a inclinação do jornalismo para defender umas cores e atacar outras – porque foram os dois jornais desportivos de Lisboa a puxar pela componente de “ódio” nas palavras de Sérgio Conceição, enquanto que o jornal do Porto puxou (a meu ver, bem) pelo que de mais rico o treinador do FC Porto disse. A minha ideia aqui vale tanto como outra qualquer. Pronto, creio que valerá um pouco mais do que a da generalidade, porque andei pelas redações dos jornais durante mais de 20 anos e sei o que lá se passa, como lá se vive. A principal preocupação dos editores de hoje não é “política”. Não é a de favorecer uma cor e prejudicar outra, não é empolar os podres de um lado e esconder os do outro. É, sim, de sustentabilidade. É, tal como expliquei nesta reflexão sobre os dilemas do jornalismo de hoje, motivada pela necessidade de ir ao encontro do que esses editores julgam que o público pretende. Do que o público deles, em particular, pretende. É por isso que os jornais de Lisboa dão menos destaque na primeira página à conferência da ANTF, é por isso que vão buscar as ideias mais negativas que de lá saíram – o público deles está mais habituado a que lhe sirvam o Sérgio Conceição visceral do que o Sérgio Conceição aberto, ainda que os dois existam, na realidade, dentro da mesma pessoa – e é por isso também que nenhum dos três jornais menciona sequer na primeira página que Nuno Dias também lá esteve. Afinal é campeão da Europa, mas é do futsal. E o público deles está menos habituado a que lhe sirvam futsal.
Não acredito num jornalismo colaboracionista nem de guerrilha. Viro a cara para o lado da mesma forma se ouço dizer que os jornalistas só deviam falar das coisas boas do futebol como quando me dizem que o nosso papel devia ser investigar os podres. Jornalistas, consumidores e agentes fazem todos parte de uma mesma realidade e todos se condicionam uns aos outros. O público gosta de futebol e de ganhar e tem uma consciência coletiva condicionada pelo que vê e lê dos agentes, através do jornalismo. Os agentes precisam de ganhar e sabem que aquilo que vão fazendo para tal é propagado pelo jornalismo e chega ao público – infelizmente, têm sido tantas as movimentações no sentido de esconder as partes saudáveis deste esforço na busca da vitória, tais como o treino, hoje em dia inacessível, como as feitas no sentido de condicionar arbitragens ou órgãos disciplinares e de expor os tais podres… dos adversários. Aos jornalistas cabe a missão de serem melhores na distinção entre o que é condicionamento e o que é notícia. Ainda que para cumprirem a missão em boas condições precisassem de viver num ambiente (desportivo e de modelo de negócio) mais saudável, de forma a não terem de viver na preocupação de saber se vão conseguir pagar a despesa no final do mês, têm de entender que o seu papel não é publicar algo só porque acham que o seu público em particular vai rever-se no que escrevem, porque acham que é polémico e vendável. Não devem publicar porque é fofinho, tal como não devem publicar só porque é nauseabundo. Devem publicar, sim, se for interessante e, sobretudo, se for notícia.
Houve muitos aspetos interessantes na palestra de Sérgio Conceição e Nuno Dias – enfim, de Nuno Dias só mesmo quem viu é que saberá bem o que ele disse... Coisas sobre a forma de trabalhar de Eriksson, acerca da progressão de Vitinha, da mentalidade dos novos jogadores face à geração de Pepe, por exemplo – e este tema até motivou um pertinente editorial no Record, por exemplo. E ou muito me engano ou a notícia que dali saiu – além da revelação de Jorge Jesus de que não deverá prosseguir a carreira em Portugal, também ela ignorada pelas primeiras páginas – foi mesmo o convite de Sérgio Conceição a Nuno Dias para que este vá assistir a um treino do FC Porto. Seria muito importante saber o que pensam disto as “estruturas” dos dois clubes, emaranhadas entre si em vários processos. E seria interessante acompanhar esta visita. Pela minha parte, se me derem o exclusivo, estou lá batido e depois venho aqui contar como foi.
Mas porquê o exclusivo? Porque é que havia de ser o único a ter acesso a esse treino e ao que lá se passaria?
Caro Tadeia, no nosso tempo (estamos velhos!!!! :( ), os jornalistas conviviam com jogadores, treinadores e até dirigentes à porta dos estádios; no nosso tempo, as entrevistas faziam-se de um dia para o outro. Tenho para mim que, a partir do "Caso Oliveira" (para quem não saiba, uma conversa, alegadamente off record, do então treinador do FCP António Oliveira no antigo estádio das Antas e que se tornou pública, precisa e curiosamente pelo Record), tudo mudou nessa relação. Não sou saudosista. Falo nisto, apenas, para refletir que os tempos, hoje, são outros. Nem melhores nem piores. Porque há SADs, porque os jornais estão na miséria, porque as redes sociais proliferam, porque os assessores são mais importantes que os presidentes, porque não há espaço para o confronto de ideias (já viu que os próprios homens do futebol se resignam). Estes momentos, como os que são proporcionados pela ANTF são, infelizmente, raros.