O teste da legitimidade
Já nem a alta política sujeita os candidatos ao teste da legitimidade, limitando-se a ver neles sucessos passados. No futebol, a tentação para rejeitar o teste também se baseia no sucesso... futuro.

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Quando ainda não era possível comprar legitimidade política – o que, atenção, não quer dizer que não se pudesse exercer cargos de responsabilidade sem a ter –, o processo de legitimação de um candidato era parte imprescindível de qualquer série televisiva que andasse em torno dos meandros de uma eleição. Como membro fanático dos clubes de fãs de coisas tão díspares como, por exemplo, The West Wing ou House of Cards, uma sobre o idealismo e a outra acerca da perfídia, vi retratados no ecrã uma série destes processos de legitimação, em que antes do anúncio de uma candidatura os seus protagonistas eram massacrados com questões, para que houvesse certezas de que não podiam ser postos em causa mais à frente, seja à conta de uma empresa que depois se soubesse que recebia avenças de privados ou de negócios imobiliários com constituintes que deviam ser absolutamente iguais a quaisquer outros e não parceiros. Nas eleições da Liga Portugal, que terão lugar já na semana que vem e que ontem motivaram uma troca de comunicados entre FC Porto e Benfica, uma espécie de aquecimento pitoresco para o clássico de domingo, é isso que está em causa. E, sim, é fundamental que tudo o que há a descobrir seja posto em cima da mesa agora, que não ignoremos o teste da legitimidade dos candidatos, já não em nome de uma legitimação prévia através do sucesso empresarial, como passou a fazer-se na política norte-americana, mas sim em função da promessa de sucesso em negócios futuros.
Entre Reinaldo Teixeira, que é presidente da AF Algarve, apoiado, por exemplo, por Benfica e Sporting, e José Gomes Mendes, o ex-secretário de estado, que tem no seu lote de apoiantes, por exemplo, FC Porto e SC Braga, há-de haver mais diferenças do que o facto de o primeiro ter feito negócios de imobiliário com Rui Costa e de o segundo ter integrado um governo do Partido Socialista. E, vamos ser claros, esses factos não são, não podem ser, impeditivos das suas candidaturas... desde que estejam à vista de todos. Ora, na sequência da notícia do Correio da Manhã segundo a qual uma empresa de Teixeira, a Garvetur, teria feito negócios com a 10Invest, de Rui Costa, o FC Porto aproveitou para pedir esclarecimentos. Normal que assim seja. Eu também quero ser esclarecido. Teixeira veio dizer que o negócio em causa já aconteceu entre 2004 e 2006 e que até foi formalizado quando Rui Costa era ainda jogador do Milan. E o Benfica contra-atacou, também em comunicado, no qual acusou o FC Porto de “má-fé”. A questão é que, de caminho, segundo leio no Record de hoje, Teixeira não assegurou que esse tenha sido o único negócio que fez com o agora presidente do Benfica. E, portanto, que a relação empresarial entre os dois estivesse extinta quando ele passou a exercer o cargo de coordenador dos delegados da Liga e Rui Costa assumiu posições de dirigente nas águias. “Tenho várias atividades empresariais. Isso não posso garantir”, respondeu a esse respeito o candidato algarvio.
Não sou só eu que oiço aqui campainhas a tilintar, pois não? Vamos lá a ver uma coisa. O que pode ser um problema aqui não é o facto de Reinaldo Teixeira ter feito negócios com Rui Costa. Quem quer que ande no futebol e, ao mesmo tempo, tenha atividade empresarial, como é o caso de Reinaldo Teixeira, há-de ter feito negócios com outros agentes que também por lá andam, tenham eles sido no futebol, compra e venda de passes de jogadores, ou até noutras áreas, porque as pessoas têm e tiveram vida antes de chegarem ao futebol e de dele tirarem rendimento. Quem quer que ande no futebol e, ao mesmo tempo, tenha atividade política, como é o caso de José Gomes Mendes, já há-de ter tomado decisões – ou participado no processo de tomada de decisões – que tenham favorecido uns e desfavorecido outros. O que pode ser um problema aqui não é que Teixeira tenha vendido umas moradias em parceria com Rui Costa há 20 anos. Não o será, pelo menos para mim, sequer que o tenha feito quando o ex-futebolista já estava de volta ao Benfica, fosse como jogador, diretor desportivo ou depois até presidente. O que pode ser um problema aqui é que isso tenha sido feito em segredo e em conflito com o código de transparência patrocinado pela mesma Liga a cuja presidência Teixeira agora concorre. Porque quem quer que opte por varrer essa questão para debaixo do tapete corre riscos muito sérios de vir depois a tropeçar nela, que ela não vai desintegrar-se e desaparecer por obra e graça do Espírito Santo.
Além de que o que está aqui em causa não são os milhões dos negócios imobiliários feitos no Algarve, seja há 20, há dez anos ou na semana passada. O que está aqui em causa são os milhões, sim, mas outros milhões: os milhões do negócio da venda centralizada dos direitos televisivos que vai cair no âmbito da responsabilidade da futura direção da Liga Portugal. Estas eleições são para o biénio 2025-27, a centralização só vai entrar em vigor em 2028, mas será nestes próximos dois anos que se vai definir, por exemplo, a grelha de distribuição das verbas pelos clubes e que peso vão ter nessa grelha questões como o mérito desportivo ou a parcela de mercado que cada um representa. Ou qual vai ser a diferença percentual entre os que vão receber mais e os que vão receber menos. E se é a Liga Portugal que vai funcionar como árbitro entre interesses tão diferentes como vão ser os dos clubes participantes, não só entre os três grandes e os outros mas também entre os próprios grandes, o mínimo que pode exigir-se ao seu presidente é que nos dê a todos garantias absolutas de transparência e que passe com distinção no teste a que, antes de ser possível e usual comprar a legitimidade política através da publicitação de uma imagem de sucesso empresarial ou do controlo férreo sobre os aparelhos partidários, tinham de sujeitar-se todos os candidatos a eleições na América e, quero crer, até em Portugal.
Interessante seria depois que, antes das eleições, tanto Teixeira como Mendes nos dissessem com clareza aquilo que defendem para este dossier tão sensível, para que não ficássemos apenas com declarações vagas de intenções e entendêssemos muito melhor porque é que determinados clubes estão de um lado e outros estão do outro. Mas aí, se calhar, já estou a pedir demais. Se essa não é, nunca foi, a política da Liga Portugal, entidade já há décadas especializada em declarações vagas e procrastinação, por que carga de água é que haveria de passar a sê-lo agora?