O tempo da revolução
Arrigo Sacchi, que vai ser premiado pela UEFA, diz que os grandes treinadores de hoje mudam pouco. O que me leva a duas questões. O que é mudar? E porque se muda?
Arrigo Sacchi, o treinador que liderou a revolução zona-pressing no futebol italiano dos anos 80 e 90 do século passado, vai ser muito justamente agraciado pela UEFA com o Prémio do Presidente e, a propósito da distinção, disse à Gazzetta dello Sport de hoje que as mudanças devem ser feitas a ganhar. A frase referia-se a Pep Guardiola, técnico do Manchester City, que Sacchi vê como o revolucionário que se seguiu, mas a quem aponta já algum conservadorismo. “Ultimamente, até ele inventa de menos. Tem de se ter a coragem de mudar a cada quatro anos, enquanto se está a vencer. Caso contrário, cai-se na armadilha do sucesso”, explica. Enquanto lia a entrevista, recordei o debate do Futebol de Verdade de ontem, no qual a propósito de uma frase do meu amigo Luís Freitas Lobo fui falando daquilo que mudou nestes últimos tempos no futebol do FC Porto e do Sporting. E lembrei-me ainda do relatório da Comissão Técnica da UEFA a propósito da última Liga dos Campeões, que a Gazzetta também avançara em primeira mão na edição de ontem, e que aproxima o que parece tão diferente.
O que é mudar? Há tantos pontos de contacto entre as revoluções identificadas por Sacchi na história do futebol nos últimos 50 anos que olho mais para elas como evoluções, como ligeiros retoques numa filosofia que é comum. “As revoluções acontecem a cada 20 anos. A Holanda nos anos 70, nós nos 90, Guardiola com o FC Barcelona nos anos 10”, considera o italiano. Já vos disse que, nos tempos de reclusão da pandemia, aproveitei para ver na íntegra o Mundial de 1974, porque me intrigava o que era isso do “futebol total”. E não só concluí que aquele foi o último Mundial verdadeiramente revolucionário do ponto de vista tático – até por nele ainda ser possível vislumbrar o passado e o futuro do futebol em coexistência – como pude ver os imensos pontos de contacto entre os diversos revolucionários que se seguiram. Aquela Holanda de 1974 jogava segundo os mesmos princípios do Milan de Sacchi e, sim, também do FC Barcelona (e do Bayern e do Manchester City) de Guardiola: colocação alta no campo, defesa zonal com pressão constante sobre o portador e trocas posicionais permanentes a favorecer a criação de triângulos dinâmicos ao longo do campo, permitindo a progressão com passes ao primeiro, segundo toque. Depois podemos chamar-lhe “futebol total”, “zona pressing” ou “tiki-taka”.
Mas não havia particularidades? Claro que sim. Cruijff foi, naquela Holanda, o primeiro “falso nove” da história do futebol, antecipando aquela que viria a ser uma das imagens de marca das equipas de Guardiola, mas o Milan tinha verdadeiros homens de área em Van Basten e Gullit. O que nos leva a outra questão: por que razão se muda? Diz Sacchi que se muda para não cair na “armadilha do sucesso” – e é aqui que me parece que o raciocínio falha. Aliás, a contradição está na mesma entrevista, numa história que o treinador italiano já contara várias vezes a propósito de um diálogo com Gullit. “Uma vez, ele perguntou-me: ‘Mister, mas se não conseguirmos fazer um golo, porque é que nos últimos dez minutos não fazemos chuveirinho para a área como todos os outros?’ Respondi-lhe: ‘Porque se por acaso fizéssemos um golo aí, depois já não jogaríamos assim só por dez minutos’”. Aqui está um caso de mudança que não era bem-vinda, não por acaso sugerida pelo único dos neerlandeses do Milan que não passou pelas mãos de Cruijff – Rijkaard e Van Basten tinham sido jogadores dele no Ajax. Porque se muda, então? Fundamentalmente por duas razões: por não ser possível continuar a utilizar uma receita de sucesso e por se ver na abastança forma de juntar valências a essa receita de sucesso.
Treinadores de equipas de topo, como Guardiola, mudam sobretudo graças à segunda razão. Em Barcelona já tinha tentado – e fracassou – integrar Ibrahimovic, dando à equipa mais uma forma de ferir o adversário com a chegada longa à frente favorecida pela dimensão física do sueco. Agora, no City, acolheu Haaland, jogador muito diferente dos avançados que tinha tido até então. Até em Portugal – e é aqui que entra a parte do debate do Futebol de Verdade – há mudanças por vontade e outras que se fazem por necessidade. Sérgio Conceição já mudou por vontade, com a inclusão de Vitinha na sua dupla de médios, tornando-a mais criativa e forte em ataque posicional, mas está esta época a voltar a fazê-lo por necessidade, porque o médio seguiu para o Paris Saint-Germain e o FC Porto regressou a uma equipa mais feita de pressão e transição. O próprio Rúben Amorim, que é visto pela maioria como o exemplo do treinador que não muda – porque as pessoas olham sobretudo para a estrutura e a dele foi sempre o 3x4x3 – já mudou muito. O Sporting do meio-campo com Palhinha e João Mário joga de forma muito diferente do Sporting do meio-campo com Ugarte e Morita, tal como o Sporting do ataque com Pedro Gonçalves, Tiago Tomás e Nuno Santos joga de forma muito diferente do Sporting do ataque com Trincão, Edwards e Pedro Gonçalves. E já nem se fala do ataque com Sarabia, Paulinho e Pedro Gonçalves.
O que me leva onde queria chegar: ao relatório da Comissão Técnica da UEFA a propósito da última Liga dos Campeões. Quais são as grandes tendências do futebol atual? São várias. Um ataque a cinco, seja partindo do 3x4x3, do 4x3x3 ou do 4x2x3x1, com inserção dos laterais ou dos médios ofensivos na linha da frente. A construção baixa, apesar dos erros que ela pode vir a provocar. A linha defensiva mais alta – o Manchester City, por exemplo, joga com a linha defensiva a uma altura média de 45,5 metros. E o pressing alto e a reação rápida à perda – o Liverpool FC fez uma média de 45 recuperações de bola por jogo nos cinco segundos após a perda. Com mais ou menos mudanças, é neste sentido que estão a evoluir as nossas maiores equipas. E não há aqui revoluções. Há a noção de que é assim que se joga na modernidade. Desde a Holanda de 1974, pelo menos.