O segredo do zero
Já parámos de tentar explicar os defeitos que levaram o Benfica ao primeiro zero na Liga desde Abril? Ótimo. Assim podemos centrar-nos nas virtudes que permitiram ao Moreirense o quarto seguido.
O Benfica não foi capaz de marcar um único golo ao Moreirense, ontem, e a generalidade das análises centrou-se na falta de capacidade de finalização dos pontas-de-lança utilizados por Roger Schmidt, na ausência de profundidade atacante de um dos laterais, primeiro Morato e depois João Vítor, na quebra física de Di María, ainda assim presente nas principais situações de perigo dos encarnados, seja através da sua constante movimentação para o início das zonas de criação ou do aparecimento em momentos de finalização, ou na troca de médios que o treinador alemão promoveu ao intervalo, abdicando de João Neves e Florentino para chamar Kokçu e Chiquinho. Mas boa parte da explicação para o facto está no Moreirense. O zero na baliza de Kewin, nesta Liga, não é exceção – é regra de uma equipa que exibe uma organização defensiva invejável. O Moreirense está há 429 minutos sem sofrer golos na Liga, desde que, no dia 6 de Outubro, faz depois de amanhã dois meses, Marcelo cortou para as próprias redes um cruzamento do boavisteiro Seba Pérez. Nestes dois meses, só marcou quatro golos, mas eles valeram-lhe onze pontos, que são mais do que têm cinco equipas em toda a competição. Esse autogolo de Marcelo foi a única bola a entrar na baliza de Kewin desde os 3-0 contra o Sporting, em Alvalade, na quinta ronda da prova. Ora se a equipa de Rui Borges sofreu nove golos nas primeiras cinco partidas e apenas um nas sete que se seguiram, isso devia fazer dela caso de estudo num campeonato que não vivesse em função dos humores dos adeptos de três clubes apenas. O que mudou daí para cá? Pois bem: nada. Ou melhor, há mais tempo de trabalho. E houve uma alteração que de certa maneira pode ser vista como ofensiva, que foi o recuo no campo de Amador para o lugar de Frimpong como defesa-esquerdo. Mas o segredo deste Moreirense está na forma como a equipa é solidária e mantém a ocupação racional do espaço entre as duas linhas do seu 4x4x2 defensivo, na articulação dos dois centrais, Marcelo e Maracás, com os dois médios-centro, Franco e Ofori, roubando aos opositores a hipótese de ligarem jogo por dentro. Ontem, o ganês nem estava disponível, mas Ismael fez bem o papel e até Ponck, um central adaptado, o cumpriu, ainda que com mais dificuldade nos momentos com bola. O segredo está ainda na maneira como os extremos, Kodisang e Madson, entendem os momentos do jogo, se é altura de largar a mota em direção à baliza adversária ou fechar à frente dos laterais. Está na capacidade do ponta-de-lança, André Luís, aguentar a bola à espera da equipa, e do seu maior criativo, Alanzinho, definir as pausas e as solicitações de ataques à profundidade. O Moreirense é a terceira equipa que menos situações de golo cria na Liga, apenas à frente do FC Famalicão e do Casa Pia, mas é a segunda que menos permite, só batida pelo Sporting. Chega à 12ª jornada com um índice de golos esperados do adversário de apenas 10,7, contra 12,0 do Benfica, por exemplo, ou 17,2 do SC Braga. E isto pode não valer grandes elogios, mas chegará perfeitamente para um campeonato tranquilo.
“Ele até sabe o esternocleidomastóideo”. Estávamos em 2008 e José Mourinho já não era o cometa fulgurante que tinha levado o FC Porto a ganhar a Taça UEFA e a Liga dos Campeões, porque entretanto já se desgastara no Chelsea de Abramovich, que no entanto ainda levara a um título da Premier League que por ali tardava um bom meio século. Quando foi apresentado como treinador do Inter, o treinador de Setúbal não só falou em italiano como surpreendeu toda a gente com a utilização de uma expressão de dialeto lombardo que não se aprende nos cursos da Cambridge School. “Io non sono uma ‘pirla’”, disse aos jornalistas, num momento que equivaleu mais ou menos ao que seria vermos um treinador italiano chegar ao FC Porto e dizer, em bom português com sotaque do norte, algo como “não sou um ‘morcão’ – sendo que ‘pirla’ tem conotação sexual também. Na altura, todos, portugueses e italianos, olharam para Mourinho com o embevecimento das tias ricas do Vasco Santana na Canção de Lisboa, o filme em que o comediante trocou a vida boémia que levava pelo estudo afincado para um exame de medicina em que chumbara várias vezes. “Ele até sabe o esternocleidomastóideo”, dizia uma das senhoras, babada de orgulho, enquanto assistia à oral. Pois bem, quinze anos depois, Mourinho está na AS Roma e ontem, após a vitória sobre a US Sassuolo, resolveu falar apenas em português. Foi a forma que encontrou para enfatizar que acha que não foi bem entendido quando referiu a propensão do árbitro nomeado para o descontrolo emocional e é uma fuga para a frente que nos remete para os desencontros recentes entre os jornalistas portugueses e Roger Schmidt, que levaram a que ontem, depois do empate em Moreira de Cónegos, o alemão tenha voltado a faltar à conferência de imprensa, por falta de tradutor. Há um ano e meio em Portugal, nem Schmidt é ainda capaz de se expressar no nosso idioma nem o inglês dos jornalistas que o confrontam melhorou de forma significativa. Ainda assim, sem a profundidade desejável, lá se entendiam, até ao momento em que Schmidt foi incorreto com um jornalista que lhe fez uma pergunta de que ele não gostou e em que, apesar de nada no incidente ter que ver com tradução ou falta de domínio do idioma, a generalidade dos repórteres retaliou, passando a dirigir-se ao alemão em português. Esquecem-se, todos, de quem é o maior perdedor deste tema: o público. Cabe aos jornalistas fazerem o possível para facilitar a conversa, incluindo falar inglês ou alemão, se o souberem, como cabe a Schmidt fazer tudo o que pode para chegar ao público que serve, incluindo pedir desculpa por ter sido incorreto e aprender português se está a trabalhar em Portugal há tanto tempo e até renovou contrato na sua primeira época. Não têm de aprender o esternocleidomastóideo. Só têm de falar uns com os outros.
Foi melhor o golo do que a festa. Rufaram os tambores porque João Félix fez o golo da vitória (1-0) do FC Barcelona sobre o Atlético Madrid, que para quem não sabe é o detentor do passe do jogador e, face à sua permanente inadaptação, o emprestou aos catalães. E, mais ainda, porque este festejou. Quem ouvisse contar a história imaginaria uma celebração épica, com caretas, piretes ou manguitos em direção a Diego Simeone, o treinador que nunca conseguiu extrair de Félix o que ele aparenta ter para dar, mas depois olha-se para as imagens e elas são de uma castidade desarmante. Félix subiu para cima dos placards publicitários atrás da baliza e deixou-se ficar, estático, de braços abertos, aparentemente em agradecimento, ainda que quem queira possa lançar a tese de que se comparava ao Cristo crucificado ou que se limitava a dizer algo como “é isto que tenho para dar”. O lance foi todo ele de compêndio, desde o movimento de Pedri, a baixar para receber do guarda-redes à forma como depois, de costas para a baliza adversária, bateu a pressão com um passe para Koundé. Seguiram-se a condução de Raphinha entre linhas e a entrega a Félix e, por fim, a dividida ganha por este a Molina e a picadinha sobre o guarda-redes. Teses de semiologia à parte, foi bem melhor o golo do que a celebração.
Um sorteio à maneira. Não pode queixar-se Roberto Martínez do sorteio da fase final do Euro 2024, que nos atribuiu como adversários a emergente Turquia, a incógnita República Checa e o vencedor do caminho três do play-off, que muitos creem possa vir a ser a Grécia, que a mim me cheira a Geórgia mas que pode até ser o Luxemburgo, que aviámos com duas vitórias e um score de 15-0 nos dois jogos da qualificação. O Europeu a sério só deve começar, para os portugueses, a partir dos oitavos-de-final – e convém ser primeiro do grupo, para aí termos como adversário um dos terceiros classificados e não o vencedor do grupo encabeçado por França e Holanda – o que vem reforçar a necessidade de um particular de grau de dificuldade mais elevado já na janela de Março. Não convém nada chegarmos à altura das decisões sem saber como a equipa responderá às dificuldades.