O segredo de Busquets
Busquets não inventou o futebol nem redefiniu uma função, mas desempenhou-a de forma tão extraordinária que há quem diga que o seu contributo é incomensurável. Não é. Aliás, é muito simples de medir.
Será provavelmente um exagero, daqueles que se cometem quando se quer muito agradecer o contributo de alguém que se vai embora, dizer que Busquets mudou o futebol. Não mudou. O futebol de Busquets já estava na cabeça de alguns muitos anos antes de ele o pôr em prática no FC Barcelona de Guardiola, o treinador que insistiu em levá-lo com ele da equipa B, onde o tivera ao seu serviço, na III Divisão espanhola. Já estaria, por exemplo, na cabeça de Johan Cruijff, o holandês que viveu a revolução do início da década de 70 e repetia até à exaustão que o futebol era um jogo que se jogava “com a cabeça” e que o que tinha de circular era a bola, que se movia “mais rápido do que os homens e ainda por cima não se cansava”. Sergio Busquets, filho de um guarda-redes, Carles Busquets, que tinha sido jogador de Cruijff e colega de Guardiola no FC Barcelona, aprendeu a cartilha enquanto crescia e, quando chegou a sua altura, estava preparado. Não era especialmente bom em nada do que era evidente. Não era um bom driblador, não era um bom rematador, não era especialmente agressivo ou forte no contacto, não era um marcador implacável. Dizem que na formação até jogava como atacante, mas no dia em que decidiu levá-lo com ele da equipa B para a formação principal, Guardiola sabia o que ele tinha para dar: entendimento invulgar do jogo e agilidade mental. Busquets não redefiniu a missão de médio mais recuado, porque antes dele já Cruijff tinha usado Milla ou o próprio Guardiola na posição, mas é um dos grandes responsáveis – com Andrea Pirlo, por exemplo – pelo facto de eu não utilizar o termo “trinco”, que é coisa muito anos 70, ou até “médio defensivo”. Ali, bem no centro do jogo, no coração de uma equipa, o que faz falta é alguém que entenda os caminhos e saiba por onde se tem de ir. Alguém que se não é forte no contacto entenda que ganha – ele e a equipa... – em soltar a bola antes desse contacto chegar. A ideia de que o médio que joga atrás dos outros serve sobretudo para juntar atrás, aos defesas centrais, ou para marcar o criativo do adversário, já tinha dado sinais de estar a cair em desgraça com o entendimento cada vez mais coletivo e zonal da organização de uma equipa. Faltava só pô-la em prática na escolha dos onze. A equipa, como organismo vivo em que estava a transformar-se com o abandono dos sistemas de marcação e responsabilização individual, tinha a obrigação de, através dos posicionamentos, cortar as vias de abastecimento a esse criativo ou de lhe fechar os caminhos para a baliza se ele recebesse a bola, de maneira a que o médio que tinha no coração do jogo pudesse assumir aquele que era verdadeiramente o seu destino nesta nova ideia: presidir à organização ofensiva, usar a sua visão de torre de controlo para fazer chegar a bola onde houvesse espaço para explorar. Foi isso que Busquets trouxe ao futebol com uma excelência não atingida pelos seus antecessores na tarefa. Quinze anos depois daquele dia em que Guardiola declarou que ia substituir Deco e Ronaldinho por Busquets e Pedrito, Sergio decidiu que já chega. Os que têm uma visão mais excessiva do seu contributo gostam de se destacar poeticamente, dizendo que ele foi incomensurável, que não há estatística que ajude a entendê-lo. Mas há. Basta voltar às coisas simples. Se um jogador está e permanece relevante numa equipa que ganha mais campeonatos do que os que perde é porque tem alguma coisa de muito especial. Busquets vai ganhar, talvez já neste fim-de-semana, no dérbi com o Espanyol, a sua nona Liga espanhola em 15 tentativas. No mesmo período, o Real Madrid venceu quatro e o Atlético levou duas. Não há melhor estatística para explicar como ele é especial.
Um jogo desigual. Não houve sequer discussão entre Inter e Milan. O jogo foi muito a cópia do que já tinha sido a Supertaça jogada na Arábia Saudita, com a diferença de que, no San Siro que serve de casa aos dois, voltando a adiantar-se até aos dois golos de avanço muito cedo – então aos 21’, desta vez aos 11’ – o Inter não fez mais golos. A meia-final não estará fechada, que há mais 90 minutos e na segunda mão o Milan já terá Rafael Leão para esticar o jogo, mas mais importante até do que anular um potencial inferior ao do adversário no seu grupo de jogadores, Pioli terá de explicar-lhes algumas coisas básicas que, a julgar pelo comportamento nos golos de Dzeko e Mhkitaryan, Calabria ou Tonali não sabem. No primeiro, nascido de um canto, Calabria só teve preocupação com o homem, que era bastante mais alto do que ele, esquecendo a bola, e foi no ato de tentar impedir o bósnio de saltar em boas condições que levou o golo com um remate por baixo. No segundo, Tonali só teve preocupação com a bola – se é que o ritmo com que baixava no campo pode evidenciar qualquer preocupação, de todo – e esqueceu-se do espaço, que o arménio atacou à vontade, para bater Maignan. Assim, a única coisa que sobra do jogo de ontem é uma dúvida: como é que o Milan eliminou o SSC Nápoles, claramente a melhor equipa da Série A?
A formação e a polivalência. Ontem, no Futebol de Verdade, falei-vos dos híbridos, aqueles jogadores cuja polivalência os treinadores usam durante um mesmo jogo para mudar um desafio taticamente. Vi, mais tarde, que alguns de vós mencionaram Aursnes nos comentários do Live Chat, mas há uma diferença entre híbridos e polivalentes que não tem que ver com os jogadores mas com o treinador. Aursnes poderia ser um híbrido, porque desempenha várias missões, mas acaba a ser um polivalente, porque Roger Schmidt não o usa para mudar a forma de jogar da equipa, preferindo a consistência de um modelo imutável no qual escolhe, todos os dias, o lugar onde vai encaixá-lo. A polivalência, porém, que durante anos vi mencionada até por alguns jogadores como a razão para não terem ido mais além na carreira – Carlos Xavier, por exemplo, carregou sempre essa cruz às costas – é um atributo essencial no futebol moderno. Rodrigo Magalhães, diretor-técnico dos escalões de formação do Benfica, contou no podcast Ciência e Futebol, do Football Observatory, que “Bernardo Silva chegou a jogar como defesa-central”, quando era ainda sub11. E aqui o debate será eterno: até quando se deve estimular a polivalência e qual é a altura ideal para começar a especialização? Hoje em dia, a maior parte dos desportos coletivos mete a fronteira na idade que separa a formação da competição, o que no futebol corresponde à passagem dos Benjamins para os Infantis. Ou, no máximo, numa abordagem mais formativa, na entrada nos Iniciados (sub13). Claro que os mais pequenos também querem competir e ganhar, mas caberá aos treinadores não ceder a essa tentação e entender que, no longo prazo, a capacidade para saber desempenhar todas as funções num campo de futebol pode servir para muito mais do que uma emergência. É ela que permite entender o jogo. Como Busquets, que nunca foi híbrido nem polivalente, mas que era filho de um guarda-redes que sonhava ser médio criativo, fez a formação como avançado e se impôs como foco organizador do meio-campo. Está o jogo todo, ali.
Sobre os híbridos, realçar um jogador que não e muito falado mas que tem tido um papel preponderante no Arouca: Syllah. Para outros patamares? É um bom exemplo de um híbrido