O sapo e o escorpião
O processo que leve as equipas a contrariar a sua natureza não é, nunca será, tão imediato como os treinadores gostariam. Sporting e FC Arouca deram ontem provas disso. Em sentidos inversos.
A fábula do sapo e do escorpião, criada por Esopo há mais de 2500 anos, ajuda a entender o FC Arouca-Sporting de ontem. De acordo com a lenda, um escorpião pediu boleia a um sapo para atravessar um rio. Queria que o batráquio o levasse no dorso. Respondeu-lhe o sapo que não, porque tinha receio que o aracnídeo o picasse. E retorquiu este: “Mas assim afogávamo-nos os dois”. Convencido, o sapo anuiu e os dois fizeram-se à travessia. A meio do rio, zás!, o escorpião picou o sapo. Este, aterrado, ainda disse: “Então? Tinhas prometido que não me picavas!”. Ao que o escorpião respondeu: “O que queres? É a minha natureza”. As equipas de futebol não têm natureza. Cresci a ouvir falar e a ler acerca da “Fúria Espanhola”, para definir uma seleção que se montava sempre a pensar na garra e no físico que metia em cada lance, ainda a vi, por exemplo, na influência basca do Mundial 82, para agora olhar para a Espanha de raiz neerlandesa e para a ver transfigurada, feita uma equipa de toque subtil, de passe e desmarcação. Mas, ao mesmo tempo, as equipas têm comportamentos inculcados que levam o seu tempo a desfazer e a substituir por outros. Esta época, Rúben Amorim meteu na cabeça que queria pôr o Sporting a “jogar à grande”, a passar mais tempo no meio-campo ofensivo e a depender menos da forma rápida como, em transição, chegava à baliza rival. A meia-final da Taça da Liga prova que esse caminho está muito longe de estar percorrido: durante toda a primeira parte, o Sporting sentiu-se sempre confortável durante os momentos de pressão e de reação à perda, quase impedindo o adversário de cruzar a linha de meio-campo, mas não teve nunca a qualidade em ataque organizado que lhe permitisse transformar o domínio estatístico e posicional em golos – ou até em situações efetivas de golo. A perder, o FC Arouca desmontou a super-organização defensiva que trazia para o desafio e tentou jogar, o que veio causar desconforto aos leões, porque estes, lá está, gostam mais dos momentos de transição do que de organização. Daí resultou justamente o golo do empate, marcado logo aos 58’. E aí voltou tudo ao início, acabando o Sporting por marcar o golo da vitória a oito minutos do fim. A pergunta que se impunha, aí, era acerca das razões que levaram o FC Arouca a baixar mais uma vez no campo, a tentar impor a sua identidade de equipa segura atrás com saída veloz pelas alas, mas a resposta podia ser semelhante à do escorpião de Esopo: “O que queres? É a minha natureza”.
A importância de Nuno Santos. Paulinho fez dois golos, mas o homem do jogo de ontem foi Nuno Santos. Uma das razões pelas quais o ataque do Sporting perdeu objetividade de 2021 para hoje foi o recuo pontual de Pedro Gonçalves para o meio-campo. A outra foi a passagem de Nuno Santos para ala esquerdo. Ambos podem desempenhar as funções com qualidade, disso não há dúvidas, mas depois faltam na frente para impedir que a equipa caia no futebol circular que tem sido a aproximação possível ao tal jogo “à grande” que Amorim quer, mas que o próprio treinador sabe que não é a mesma coisa. Entre Nuno Santos e Pedro Gonçalves há, ainda assim, uma grande diferença. Pote foi uma readaptação provocada pelas lesões de Morita e Bragança, pela saída de Matheus Nunes e pelo misterioso ocaso de Alexandropoulos. Não há razões para que tenha de continuar a não ser em casos muito especiais, como foi o forcing final no jogo de ontem. Nuno Santos foi a melhor resposta possível à transferência de Nuno Mendes e, tal como se viu no jogo de ontem, onde se fartou de dar bolas de remate aos colegas, é cada vez mais fundamental na fluidez que a equipa tem pela esquerda. E ainda mais importante se tornará se Porro sair mesmo para o Tottenham.
A qualidade de Alan Ruiz. Alan Ruiz nunca justificou os 4,8 milhões de euros que o Sporting pagou por ele ao San Lorenzo, em 2016. O rótulo matou-o e, apesar dos sete golos que fez na primeira época, saiu a meio da segunda por empréstimo. O “downgrade” que fez na carreira a partir daí trouxe-o a Arouca. Os adeptos começaram por olhar para ele com desconfiança e ele próprio só nas últimas quatro jornadas da Liga anterior se mostrou à altura. Este ano está um jogador diferente. Parece pesado, lento, mas a forma como pensa o jogo da equipa e, mais, como o enche de virtuosismo em cada execução, em cada drible, em cada travagem ou abrandamento, faz dele uma das boas surpresas do campeonato. O passe em trivela que fez ontem para o golo de Dabbagh não é coisa que esteja ao alcance de qualquer um. Foi uma chamada de atenção para o facto de, aos 29 anos, ter renascido em Arouca o Alan Ruiz que encantou Jorge Jesus.