O Regressar e os outros impostos
O Regressar pode ser visto de várias formas. Um benefício a privilegiados, um modo de o Estado arrecadar euros que de outra forma não atingiria e uma maneira de o futebol negociar a carga fiscal.
Quem diz que os futebolistas não andam informados, que as vidas deles são passadas dentro de bolhas condicionadas pelas redes sociais, não há-de ter estado atento às últimas evoluções do caso Di María. Então não é que o argentino, que esta época regressou ao Benfica, voltou a meter na agenda mediática o seu plano de passar um ano em Lisboa antes de vestir por uma última temporada a camisola do Rosário Central, no seu país, numa entrevista dada para a América Latina precisamente horas antes de se saber por cá que o Orçamento de Estado para 2024 ia extinguir as vantagens fiscais do programa Regressar no patamar de rendimento de que ele beneficia? Agora a sério: creio que foi mesmo uma coincidência e que, de coração, o plano de Di María foi sempre esse. Di María está de bem com a vida – e está bem na vida, que dinheiro é coisa que não lhe fará falta –, já jogou em muitos clubes grandes e pode bem fazer uma cedência ao coração e outra à família em vez de negar princípios participando na lavagem em curso na Arábia Saudita. Ponderando tudo, o Benfica estará certamente a avaliar Di María a cada segundo, a ver se vale a pena reforçar a ofensiva de charme destinada a levá-lo a mudar de planos e a prolongar a estadia por cá, deixando de parte o sonho de regressar a casa, mas a perda das vantagens fiscais de que atualmente beneficia já a partir de 2024 será certamente um sério entrave à sua continuidade. E, vista a coisa assim, isoladamente, este poderá ser um problema, mais um a enfrentar por um futebol português onde a carga fiscal já é das mais elevadas que se vê pela Europa. Os nossos clubes deixarão de ser atrativos para estrelas que já passaram o auge, tais como Di María, Otamendi, João Mário, Pepe, Luís Neto, José Fonte, João Moutinho ou Quaresma, todos beneficiários deste programa, e nem querem saber se a medida lhes permite promover a chegada de talento que nunca cá tenha estado, porque mesmo nas Ligas periféricas onde se abastecem será complicado fazer propostas competitivas abaixo dos 250 mil euros anuais. Foi muito por isso que Pedro Proença, o presidente da Liga Portugal, já veio pedir a constituição do futebol enquanto exceção. Mas a problemática não pode ser vista de uma forma tão simplista. Quantos dos que, a pensar com o coração nos interesses dos seus clubes, se revoltaram já contra a abolição do benefício a cidadãos tão privilegiados como são os futebolistas de alto nível, mas pensariam de forma diferente se depois lhes disserem que essas verbas terão de ir parar na mesma aos cofres do Estado, acabando o benefício aos jogadores por onerar outros – até a eles? A questão é complexa e não pode também ser vista numa equação tão resumida como a que se faz ponderando de um lado os impostos pagos pelos regressados a uma taxa que os beneficia e, do outro, o facto de eles não regressarem de todo, não contribuindo dessa forma com um cêntimo e forçando o Estado a ir buscar esse dinheiro a outros impostos. É urgente abordar a aberração que é o futebol pagar IVA a 23 por cento enquanto outros espetáculos o têm à taxa reduzida de 6 por cento. E depois disso enfrentar um dos temas mais urgentes nos debates paralelos acerca da competitividade internacional do futebol português e da justiça social e fiscal do país. É certo que há problemas bem mais urgentes a resolver em Portugal – saúde, educação... – mas ao falarmos da perda de competitividade internacional do nosso futebol convém sabermos que cada milhão de euros gastos em salários custa aos nossos clubes 2,46 milhões, valor que na Europa só é superado pela França. Aos clubes holandeses, que recentemente nos superaram no ranking, esse mesmo milhão limpo custa 2,08 milhões. Aos italianos e aos espanhóis custa menos de dois milhões. E isso no final faz diferença.
Os franceses e a TV. Proença disse também que está a trabalhar para acelerar o calendário de centralização dos direitos televisivos imposto por decreto-lei a partir de 2028. Sou a favor da centralização por várias razões. Porque ela permite ao regulador ter poder de facto sobre as provas, por passar a controlar a distribuição da receita, mas também por uma simples questão de justiça e pela noção de que essa é a única forma de elevar a competitividade interna. Mas já escrevi também que estou muito pessimista em relação à promessa feita pela Liga Portugal, segundo a qual ninguém vai ficar a receber menos dinheiro das TVs. Os contratos feitos pelos três grandes foram assinados num contexto de extrema concorrência entre operadores, numa fase de expansão, e não será fácil igualá-los daqui até 2028. Disso se aperceberam, para já, os franceses, que viram bater na trave as exigências que fizeram no processo de leilão dos seus direitos televisivos para o período que vai de 2024/25 a 2028/29. A Liga colocou cinco pacotes complementares a leilão. O mais valioso, que previa a transmissão de dois jogos por jornada (com primeira escolha) e de uma quarta escolha em codifusão, custava 530 milhões por ano. O segundo, que tinha os outros jogos, incluindo o grosso da jornada da Ligue 2 em simultâneo, estava avaliado em 270 milhões. Houve interesse da DAZN e da beIN Sports, mas não se fez negócio, porque nenhuma das propostas chegou aos valores pretendidos pela Liga. Vivemos um contexto no qual o futebol vale cada vez menos para os difusores tradicionais e a saída vai ser sempre através das plataformas de streaming e de novas formas de transmissão. Quem se adaptar mais rápido vai fazer mais dinheiro, mas nem assim será fácil cumprir a promessa da Liga Portugal.
O calvário de Neymar. Confirmou-se o pior cenário para Neymar, que deixou o relvado do Centenário, em Montevideu, em lágrimas, depois de ter sido forçado a sair por lesão no final da primeira parte. A rotura total do ligamento cruzado anterior, com fratura do menisco, vai forçá-lo a pelo menos oito meses de paragem, o que é lastimável, e não só por se tratar de um jogador muito talentoso. Fica sem ele o Al-Hilal de Jorge Jesus, o que é um problema para quem precisa de um chamariz, como fica sem ele a seleção do Brasil, onde a ausência do seu jogador mais marcante da última década tende a ser vista como oportunidade de encarar o futuro sem ele. A situação não é fácil, porque o “escrete” neste momento nem treinador tem – Fernando Diniz é interino –, mas é mais do que altura para uma seleção que tem Rodrygo, Gabriel Jesus e Vinicius Júnior olhar de uma vez para um 4x3x3 com três médios verdadeiros e sem um 10 que lhe custa mais do que acrescenta. A carreira de Neymar não acabou, que ele ainda só tem 31 anos. Mas aquilo que o Brasil não ganhou desde a meia-final de 2014 – o 1-7 com a Alemanha depois de ter perdido o jogador-estrela, lesionado, na partida anterior – leva a que esta seja uma questão a abordar em dupla-negativa. Daqui a oito meses, tanto podemos estar a olhar para o regresso de Neymar como se de um Messias se tratasse, porque o escrete está sem rumo, como podemos estar a dar ao novo selecionador, se for mesmo Ancelotti, a possibilidade de olhar para uma equipa sem ele, se a proverbial falta de profissionalismo do Menino da Vila o levar a atrasar-se na recuperação.