O futebol e as apostas
Os italianos já apanharam dois futebolistas culpados de apostar em jogos e isso pode servir para relançar o debate. Afinal, o que nos preocupa quando se fala de apostas em futebol?
O Totobola foi uma instituição naquele Portugal que se dizia de “gente pobre mas honrada” que era o dos anos 70 em que cresci. Ganhar o Totobola era o passaporte para a fartura, para a abastança meritória, porque se criava a ilusão de que o “treze” no Totobola dependia do saber e não da sorte pura e simples, como a lotaria cantada ao fim das manhãs de quinta-feira na rádio. Já não sou do tempo em que o “Vamos Jogar no Totobola” era apresentado na RTP pela voz autorizada de Artur Agostinho, assim a figura mais reconhecida do futebol nacional, a par do Eusébio e do Damas, mas que mesmo assim despia o casaco de jornalista e aparecia na TV para nos deixar o “palpite Ovomaltine”. Em contrapartida, ainda me lembro bem do boneco que parecia o José Fialho Gouveia e da música que entrava no ouvido para nos levar à ilusão dos contos de reis na versão 2.0 do mesmo programa, com palpites de convidados. “Totobola, um, xis, dois. Ter certezas e depois...” Mesmo que na maior parte das vezes não passassem de fezadas gravadas na rua a cidadãos anónimos ou, máximo upgrade, a figuras do espetáculo, os programas semanais que a RTP nos trazia com o jogo dos palpites eram um oásis de conteúdo futebolístico, porque não havia TV por cabo com programas diários acerca do pontapé na bola e o futebol nem sonhava ter espaço nos telejornais. E quando aparecia um futebolista a arriscar a sua aposta no Vamos Jogar no Totobola era uma festa. O Mundo, no entanto, mudou. Hoje em dia, os esquemas para ganhar dinheiro de forma ilícita são tantos que já não se pode associar jogadores às apostas desportivas. Nunca nos passou pela cabeça, naqueles tempos, proibir um futebolista de ir ao café registar o totobola, suspeitar de que o seu empenho em campo pudesse ser condicionado pelo local onde tinha posto as cruzinhas no boletim, mas hoje pensamos de forma diferente. O Totonero, escândalo associado à mafia italiana e à manipulação de resultados da Série A no início da década de 80, que quase tirava Paolo Rossi do Mundial’82, foi um primeiro abre-olhos para a noção de que não é lícito aos futebolistas apostar em futebol. A proliferação de sites de apostas e a adoção universal do modelo inglês em voga desde o tempo dos Peaky Blinders, com a possibilidade de se escolher os jogos em que se aposta ou a parte do jogo em que se aposta (resultado, mas também total de cantos, golos ou até cartões) veio mudar muito o panorama. O Ministério Público italiano está a conduzir uma investigação a uma rede de apostas ilegais na qual já apanhou o juventino Fagioli e o ex-milanista Tonali. Ambos confessaram ter apostado em futebol e serão suspensos, pelo menos até final da época. Zaniolo, que deixou a AS Roma e joga no Aston Villa, está sob suspeita, mas garante que se limitava a jogar black jack nos casinos online que frequentava. E é o momento de separar as águas, de se dizer que o Mundo mudou, sim, e que isso pode até impedir os futebolistas de apostar, mas que as apostas desportivas, desde que em suportes legais – e sobre o processo de legalização haveria muito a dizer... –, não podem ser mais diabolizadas do que (não) era o Totobola ou do que (não) continua a ser a raspadinha. As Ligas continuam a ser patrocinadas por casas de apostas, os clubes continuam a ter nas camisolas marcas de casas de apostas, porque é através das casas de apostas que circula o dinheiro que depois vai pagar os salários dos jogadores e dos treinadores. E é altura de definirmos o que nos choca no processo, se é o facto de suspeitarmos de manipulação – e sei bem que esse risco existe, sobretudo em divisões inferiores, onde os jogadores não ganham tanto como poderão ganhar numa eventual atividade lícita – ou de nos arreliar que o excedente vá para empresas sediadas em paraísos fiscais em vez de servir obras como a da Santa Casa da Misericórdia. Mas isso, lá está, não é tema do futebol. É uma questão social, deste mundo global que deixa circular o dinheiro sem o escrutinar. E porque é que nisso o futebol há-de ser diferente?
Os incorrigíveis ingleses. A Inglaterra ganhou por 3-1 à Itália, garantindo a qualificação para o Europeu e deixando a “azzurra” entre a espada e a parede: apura-se se ganhar à mesma Macedónia que a deixou fora do Mundial de 2022 e se depois pelo menos empatar com a Ucrânia no terreno neutro de Leverkusen a que a guerra força Trubin e companhia. Os ingleses estão a repetir a mesma fase de qualificação sem falhas a que já habituaram o Mundo – nos últimos 15 anos só perderam duas vezes em desafios de apuramento, contra a Ucrânia em 2009 e a República Checa em 2019 – e a exigir as mesmas coisas que sempre exigiram, muito provavelmente para virem a ser confrontados com a mesma desilusão quando chegar a fase final. Esta Inglaterra tem gente de qualidade, como o incontornável Bellingham ou Kane, mas continua a ter pontos fracos bem identificáveis até pela política de grupo fechado que Gareth Southgate também segue. Ontem, ganhou à Itália com Maguire e Kalvin Phillips, jogadores ostracizados nos clubes de Manchester, no onze inicial – e o segundo, pela agressividade que foi pondo nos carrinhos, deveria ter sido expulso a meia hora do final. A Inglaterra pode vir a ganhar o Europeu? Pode. Mas é provável? Não me parece.
O beijo de Diniz. O Uruguai-Brasil desta madrugada foi marcado pelo beijo que Fernando Diniz deu na mão de Marcelo Bielsa, quando os dois se cumprimentaram logo a abrir. Houve no ato uma espécie de vassalagem que o jogo se encarregou de confirmar. O Brasil não perdeu por causa do beijo, certamente de gratidão, do selecionador que está a manter quente o lugar de Carlo Ancelotti. O Brasil perdeu porque continua a despistar-se na composição do elenco, ao contrário de uma equipa uruguaia que nem a proverbial loucura de Bielsa faz descarrilar de um eixo de continuidade. E a diferença vai muito para lá dos treinadores, cada um dos quais fez jogar de início três homens que não estiveram no Mundial (Yan Couto, Gabriel Magalhães e Carlos Augusto no Brasil; Nández, Sebastian Cáceres e Max Araújo no Uruguai). A diferença esteve no comportamento dos que deviam garantir a continuidade, representados na celeste por Ronald Araújo, Valverde, Ugarte e sobretudo Darwin Núnez, autor de um jogo monstruoso a finalizar e a suportar no físico o crescimento da equipa. Não deixa de ser irónico que tenha precisado de se agachar para marcar, de cabeça, o primeiro golo dos 2-0 com que a partida fechou, mas isso foi como o beijo de Diniz. Foi uma figura de estilo.
Messi e a Bola de Ouro. Se eu acho que Messi devia ganhar a Bola de Ouro de 2022/23? Não, não acho. Se acho que é escandaloso que a vença? Também não acho. Começou a circular ontem que o argentino vai conquistar pela oitava vez o troféu que voltou a ser da exclusiva responsabilidade da France Football e logo se falou do Mundial como justificação. Messi levou a Argentina às costas até à vitória no Mundial do Qatar e isso, só por si, já chegaria para o meter no lote dos candidatos. Mas as vitórias no Mundial não garantiram a Bola de Ouro a Mbappé em 2018 (ganhou Modric), a Neuer em 2014 (ganhou Ronaldo) ou a Iniesta em 2010 (ganhou Messi). O último jogador a acumular na mesma época o Mundial e a Bola de Ouro foi o italiano Fabio Cannavaro, em 2006, e não há muitas dúvidas de que o melhor do Mundo nessa altura não era ele mas sim Zidane, culpado daquela cabeçada no peito de Materazzi na final. É por isso que acho que Messi ser tido em conta não é escandaloso, mas que a época que ele fez no Paris Saint-Germain, ganhando a Liga francesa de aflitos e fracassando na Liga dos Campeões, devia levar os jurados a olhar para outro lado. Para onde? Necessariamente para alguém do Manchester City. E é aqui que tudo joga a favor de Messi, porque a Haaland não se lhe reconhecem méritos a não ser na finalização – e a ausência da Noruega das fases finais também não o ajuda –, De Bruyne voltou a lesionar-se cedo na final da Champions e Rodri é apenas a peça que faz com que a máquina funcione, sempre desvalorizado quando se trata de avaliar individualidades. Messi vai ganhar, vai aumentar a distância que o separa de Cristiano Ronaldo (para um 8-5 que não creio seja reflexo da importância que os dois tiveram neste início de século), resolvendo definitivamente a disputa particular entre os dois que tem tornado o prémio um foco de discórdia. Em breve tudo voltará à normalidade.