O que recomenda Tuchel
A Inglaterra voltou a virar-se para um selecionador estrangeiro, nomeando o alemão Tuchel na senda de Eriksson e Capello. E o que o recomenda é tanto o palmarés como a leveza de que mostrou ser capaz.
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Do que me lembro, porque tive de me deixar disso sob risco de não fazer mais nada na vida, há duas maneiras de jogar Football Manager. Há aqueles jogadores que assumem uma equipa, fazem aquisições e vendas no mercado, sempre muito à conta daquilo que conhecem dos futebolistas na vida real, e depois gerem os jogos, escolhendo onzes e fazendo substituições. E há um outro grupo, no qual cheguei em tempos a incluir-me, que quer controlar tudo, desde os treinos específicos até à análise concreta daquilo a que Roberto Martínez chamaria “as valências” de cada jogador, fazendo gráficos com subidas e descidas de forma e gerindo os minutos de utilização de modo obsessivo. Esta é um pouco a diferença que se estabelece na vida entre treinadores de seleção e treinadores de clube. E é por isso que, numa altura em que Thomas Tuchel, mais um vencedor da Champions League, se muda para o outro lado, para o futebol de seleções, assinando por Inglaterra, convém recordar que nem todos os que servem para uma tarefa são os mais indicados para a outra. E que, sem que haja sequer sombra de paradoxo, são os fracassos recentes que podem fazer do alemão um encaixe mais perfeito no universo das seleções.
Um bom selecionador é o quê? Olhem o campeão do Mundo: Lionel Scaloni. Chegou à seleção argentina como interino, em 2018, depois de ter sido observador de jogos na equipa técnica de Jorge Sampaoli no Mundial da Rússia e, mais tarde, técnico dos sub20 num torneio amigável em Maiorca. Experiência prévia como treinador? Rigorosamente nenhuma. E o campeão da Europa: Luís de la Fuente. Deixou de jogar em 1994, arrancou como técnico pelos regionais, passando três anos no Portugalete. Esteve mais uma época (incompleta) na II Divisão B, cinco nas camadas jovens entre o Sevilha FC e o Athletic Bilbau, o clube onde depois trabalhou durante mais cinco anos, entre a equipa B e um cargo de diretor. Ainda voltou à II Divisão B até que, em 2013, quando estava prestes a fazer 52 anos, entrou na Federação. Dois anos mais velho do que José Mourinho, que por essa altura já tinha ganho tudo e entrava na que hoje podemos considerar a curva descendente da sua carreira, De la Fuente pegava nos sub19 espanhóis. Passou pelos sub21 e chegou por fim à seleção principal, na sequência do fracasso clamoroso de Luís Enrique no Mundial do Catar. Nem De la Fuente nem Scaloni tinham ganho um único título ao comando de um clube quando deles fizeram selecionadores nacionais. E no entanto os dois tiveram sucesso na liderança das suas seleções, porque uma coisa e a outra têm pontos de contacto – o jogo é o mesmo – mas formas muito diversas de lidar com o trabalho.
Tanto De la Fuente como Scaloni são jogadores de Football Manager na perspetiva mais suave. Gente como Mourinho ou Guardiola não. São daqueles jogadores que querem controlar tudo. Metê-los numa seleção nacional seria matá-los – ou pelo menos matar aquilo que eles são hoje, personalidades obsessivas com o controlo sobre os seus futebolistas e tudo o que possa vir a afetar-lhes o rendimento. Um selecionador nacional faz o quê? Na maior parte do tempo vê jogos. Vê os seus potenciais convocados, vai analisar as métricas que lhe chegam dos clubes onde eles trabalham, fala com eles e com os seus treinadores. Depois, em Setembro, Outubro, Novembro, Março e, às vezes, se há fases finais, em Junho também, chama os jogadores para um par de partidas. Eles chegam num dia, no outro fazem trabalho de recuperação, ao terceiro dia vão treinar e ao quarto jogam. O ciclo depois repete-se: recuperação, treino e segundo jogo ao fim de 72 horas. Acaba o jogo e os futebolistas já nem voltam juntos, que o tempo urge e a maior parte deles regressa pelos seus próprios meios (ou por meios dos seus clubes) ao seio do que é verdadeiramente o seu grupo de trabalho. Para se ser selecionador é preciso ter uma leveza de espírito e uma capacidade de abdicar daquilo que é um vício de quase todos os jogadores que deram treinadores: o vício do controlo. É que um selecionador não controla nada. Recebe o que o futebol lhe dá, tenta juntar as pontas e usufrui. Nem lhe vale muito a pena cansar as meninges.
Claro que há maneiras melhores e piores de fazer cada um destes trabalhos. A questão é que não têm de ser as mesmas. Thomas Tuchel, esta semana anunciado como selecionador inglês em substituição de Gareth Southgate – ele próprio um fracasso como treinador de clube, no Middlesborough, antes de entrar na carreira federativa pelos sub21 –, é indiscutivelmente um treinador muito competente, com títulos importantes no palmarés. Passou cinco anos no FSV Mainz antes de ser escolhido como sucessor de Jürgen Klopp no Borussia Dortmund. Ganhou uma Taça da Alemanha e seguiu para o Paris Saint Germain, numa altura (2018) em que tudo o que soava a alemão era visto como garantia de sucesso através do Gegenpressing. Em Paris, Tuchel foi duas vezes campeão francês, mas o fracasso na conquista da Liga dos Campeões, uma espécie de Santo Graal para os cataris que pagam os excessos do clube, levou-o à porta de saída e à entrada no Chelsea. Em Londres, Tuchel fez uma transformação imediata no clube, ganhando a Liga dos Campeões na sua primeira meia época e, depois, a Supertaça Europeia e o Mundial de clubes no arranque da temporada seguinte. Este sucesso rápido, sem ser fruto da consolidação de processos, parece indicar que ele é material de seleção. Mas não é só isso que o recomenda. Além disso, convém lembrar que Tuchel fracassou em todos os testes de durabilidade desde então – o que não é necessariamente mau quando se pensa no que é ser selecionador. Foi despedido do Chelsea por Todd Boehly, o americano que pegou nas rédeas deixadas por Abramovich, alegadamente por não querer ser responsável por tudo e mais alguma coisa na gestão do futebol do clube. A cena dele era mesmo treinar e jogar, não era gerir. Depois, foi despachado do Bayern Munique, onde ainda ganhou a Bundesliga – mais por desistência do Borussia Dortmund – na primeira época, mas fracassou redondamente ao ser terceiro classificado na segunda.
Um bom treinador de clube não tem de ser um bom selecionador – e os ingleses já sabem disso desde os tempos de Sven-Goran Eriksson ou, sobretudo, Fabio Capello, super-titulado no Milan mas incapaz de ganhar troféus à frente da seleção inglesa. A Inglaterra tem hoje uma nova geração de jogadores do melhor que se encontra por todo o Mundo: foi campeã do Mundo de sub17 e sub19 em 2017, com jogadores que estão agora a entrar no auge das suas carreiras, pois terão entre 23 e 25 anos. Muitos deles chegaram já à equipa principal e deram o seu contributo para vários quase-sucessos sob a liderança de um treinador indicado para o trabalho de liderar uma seleção mas a quem faltava o espírito competitivo e vencedor que as grandes ocasiões exigem. Nas derrotas nas finais do Europeu de 2024 (1-2 com a Espanha com o golo decisivo aos 86’) e de 2021 (nos penaltis com a Itália no santuário de Wembley) viu-se um pouco daquilo que é o pé frio de Southgate, o jogador que perdeu o penalti da meia-final contra a Alemanha no Europeu de 1996. Tuchel não é pé frio. É ganhador. A dúvida que resta é a de se ver se ele consegue trabalhar como se jogasse Football Manager naquela perspetiva mais diletantística, abdicando do controlo que os treinadores de clube transformam na sua primeira prioridade assim que abraçam um desafio.
PS - Esta semana foi diferente do habitual, com muitas horas passadas em aeroportos. Não consegui, em devido tempo, avançar com o trabalho que pressupõe a entrega da Entrelinhas ao sábado. Esta semana, por isso, não haverá Entrelinhas. Fica o meu pedido de desculpas a todos, prometendo que a newsletter de revisão semanal voltará já no sábado seguinte. E vemo-nos no domingo à noite, no Futebol de Verdade.
Há uma febre do gegenpressing que nunca vi refletida na realidade, parece-me um fenómeno cujo sucesso durou menos que o ticki-tacka, mas posso estar enganado. Surpreende-me a Inglaterra apostar num Alemão, mostra como tudo mudou. Ainda vamos ver um Argentino a treinar o Brasil.