A expiação de Rui Costa
A SAD do Benfica foi acusada pelo Ministério Público de vários crimes relativos ao período de Vieira. Rui Costa foi ilibado pelo seu antecessor, mas a expurgação do vieirismo não se faz pelo silêncio.
Palavras: 1301. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
A acusação de corrupção desportiva que, a par de outras, o Ministério Público faz impender sobre a SAD do Benfica, os seus ex-dirigentes Luís Filipe Vieira e Paulo Gonçalves, bem como a SAD do Vitória FC e os seus anteriores responsáveis, Fernando Oliveira, Vítor Hugo Valente e Paulo Grencho, pode até acabar por ser arquivada, que de todas me parece a mais difícil de provar, mas não deixa de ser reflexo de uma maneira de fazer as coisas que o futebol precisa de erradicar, bem como de causar danos reputacionais gravíssimos aos encarnados, ao nível dos que ainda hoje, 20 anos passados, caem sobre o FC Porto à conta do processo do Apito Dourado – e a sua eventual expiação por parte de Rui Costa passará sempre pela condenação clara do modus operandi do seu antecessor, haja ou não veredicto de culpado em tibunal. É bom lembrar que este agora é o tempo dos tribunais, mas nada impede que se reflita sobre o caso. Aliás, bom seria que as instâncias responsáveis o fizessem e, acima de tudo, que se mexessem para evitar que os candidatos a líderes desportivos vejam como atrativa esta forma de fazer as coisas, seja para eles ou para os seus clubes.
Essa é a primeira reflexão a fazer. Neste caso que envolve Benfica e Vitória FC, quem é que saiu beneficiado – se é que alguém saiu beneficiado, que isso será o tribunal a decretar? Foram as duas SADS? Foram os seus dirigentes? Que aqueles negócios fazem zero sentido, disso não preciso de nenhum tribunal para mo dizer. Basta-me o senso comum. Futebolistas a serem dados e depois recomprados – sendo que a recompra estava alegadamente decidida logo no ato da oferta? Outros cujo direito de preferência foi comprado mais do que uma vez, mesmo que depois nunca tenham chegado sequer a treinar-se no clube comprador? E para o caso não é minimamente relevante que o jogador em causa (João Amaral) tenha acabado por até dar lucro ao Benfica, porque isso pode não ser mais do que fruto da influência que o clube era (e ainda é) capaz de exercer sobre as cotações de mercado, num esquema de pirâmide puro e duro. Que estes negócios não foram feitos no sentido da defesa de um interesse meramente desportivo percebe-se até das declarações de Magalhães e Silva, o advogado de Luís Filipe Vieira, que veio comparar este caso com o do Bayern Munique e do Borussia Dortmund, por exemplo. E é que não só não tem nada que ver como é precisamente no caráter bastante dissimulado desta “ajuda” que está o problema.
O que é que se passou entre o Bayern e o Borussia? É simples de explicar. Os amarelos viveram durante anos acima das suas possibilidades, no final dos anos 90 do século passado, período em que por lá passou, por exemplo, Paulo Sousa. Nesses anos, o Borussia Dortmund deixou crescer a sua dívida a um plano tão elevado que correu sérios riscos de falência. Em 2001, quando havia a possibilidade de isso acontecer, o clube desenvolveu um plano de resgate, numa estratégia agressiva de marketing, mas beneficiou da ajuda do seu maior rival, que lhe fez um empréstimo de dois milhões de euros, utilizados, entre outras coisas, para pagar salários. E é aqui que está a diferença: é que, apesar de o plano não ter sido na altura divulgado publicamente – foi Uli Höness, antigo CEO do Bayern, quem o revelou, em entrevista, anos depois – não só foi tudo feito de forma transparente, sem esses subterfúgios dos direitos de preferência sobre quem de facto não se quer, como seis semanas depois o Borussia já tinha pago a dívida. Ora não é isso que está aqui em causa, num processo em que há uma transferência de somas avultadas com justificações que não faziam sentido. Vieira queria ajudar o Vitória FC? Fazia-lhe um empréstimo. Assim abriu o espaço por onde veio a entrar a investigação.
Qual seria a verdadeira ideia? Ajuda desinteressada? Enriquecimento ilícito, com desvio das verbas gastas? Influência política, por exemplo nas votações da Liga? Obtenção de vantagem desportiva? É isso que caberá à investigação provar. Sendo que aquilo que mais mexe com as pessoas, que é a corrupção para o recebimento de vantagem desportiva é o mais difícil de ser provado. Luís Filipe, que nunca jogava, entrou no final de um jogo com o Benfica e fez logo um penalti, que valeu aos encarnados uma suada vitória por 2-1, na temporada de 2017/18? É estanho? É. É crime? Não sabemos… Aí é que está o ónus da prova. E para conseguir dar casos de corrupção desportiva como provados, a investigação precisa de ser dotada com todos os meios, porque o crime – a haver crime – é tão grave que é do interesse de toda a gente, do Ministério Público à Liga e ao próprio Benfica, esclarecer exatamente o que se passou. É aqui que vale a pena falar do estatuto do “whistle blower”, que neste caso foi o “hacker” Rui Pinto, ele próprio a ter de enfrentar uma série de acusações por violação de correspondência, a partir de Janeiro, bem como da impossibilidade de uso de escutas por parte da justiça desportiva. Nada destas coisas é linear. Devemos ignorar factos graves porque só deles tomamos conhecimento de uma forma ilegal? Creio que não. Mas também não podemos julgar com base nessa tomada de conhecimento. Esse deve ser um ponto de partida que servirá para se abrir a investigação que, ela sim, decidirá se dá o passo seguinte e formula uma acusação, por sua vez arguida em tribunal. É assim que funciona o estado de direito.
O que não faz sentido é que depois se chegue à justiça desportiva e haja formas legítimas de investigação em outras áreas que ali não são aceites. Porque, mesmo recusadas, as escutas do Apito Dourado, por exemplo, causaram danos reputacionais gravíssimos ao FC Porto, que com o ganho de recurso no Conselho de Justiça da FPF nunca os expiou e manteve em funções Pinto da Costa, afastado apenas quase 20 anos depois, quando perdeu as eleições com André Villas-Boas. No caso do Benfica e destes processos, Luís Filipe Vieira já está fora, mas vale a pena debater o papel do atual presidente, Rui Costa, que à data dos factos era diretor desportivo. Rui Costa não foi sequer acusado e já passou ao papel de testemunha da acusação, porque Vieira o ilibou de qualquer participação nestes negócios. Como assim? O diretor desportivo não tomava parte nas negociações para a aquisição de jogadores? Até aqui, Vieira deixa um presente envenenado ao seu sucessor, que tem contestado em todas as intervenções públicas. Por ação do ex-presidente, o atual líder do Benfica deixa de ser acusado como suspeito no esquema criminoso para ser visto como bibelot que ele tinha lá num gabinete, sem lhe dar a possibilidade de participar, não era na gestão financeira ou patrimonial, era na área dele, a da direção desportiva. E isso também não lhe deixa a reputação intacta.
Em ano de eleições – que o processo certamente se arrastará para 2025 – Rui Costa terá duas pílulas particularmente amargas para tomar. Uma diminui-lhe a capacidade de decisão. Outra pode diminuir-lhe a seriedade. Mas uma coisa parece evidente: o afastamento do Benfica em relação ao Vieirismo não ficará nunca completo com o afastamento do ex-presidente e o silêncio do atual a esse respeito. O Benfica tem que fazer a expiação que o FC Porto não fez com Pinto da Costa, à partida porque este até no cargo ficou. E isto já não depende do resultado do julgamento. É uma evidência que nos grita a todos.
Faz uma insinuação sobre a idoneidade de um profissional, o Luís Filipe. Tonel, no seu último ano de profissional, jogando pelo Belenenses, comete um pênalti absurdo (uma mão completamente desnecessária e despropositada) nos descontos, um lance que valeu o golo aos 94' dando avitória ao SCP! Assim gostaria saber se este lance também merece, da sua parte, uma insinuação idêntica.
Aqui está porque, se por um lado não podemos falar do futebol sempre de um ponto de vista conspirativo como se estivesse tudo comprado, por outro lado não podemos nos fazer de sonsos e achar que o futebol é impoluto e incorruptível e atacar quem chama a atenção ao que temos de estar atentos: tudo o que é estranho. Já na época de 2015/16 o Benfica jogou quase sempre contra 10, com um jogador expulso sempre que o jogo estava complicado, com uma expulsão apenas quando o campeonato estava ganho apesar de entradas como a do Renato Sanches sobre Brian Ruiz à frente de todos. O titulo foi atribuído à motivação dos ataques do presidente do rival, por mais absurdo que seja. Nessa época e noutras foram os negócios de compra, venda e até oferta de jogadores e mais um lance estranho lembrado neste texto. E agora falo contra todos os clubes, porque falo de um empresário em particular: atenção à loja dos 15 milhões, que até já foi do Benfica...não sei como ninguém estranha que jogadores de equipas B, com maior ou menor potencial, sejam sempre vendidos por 15 milhões de euros...Mas um dia...