O que falta à nova Champions
A nova Liga dos Campeões é alvo de críticas por duas razões. Por saudosismo de um Mundo que não volta e por interesses diversos no controlo da receita. Mas a razão mais importante tem-nos escapado.
A nova Liga dos Campeões, que se anuncia para 2024, em resposta à tentativa de rebelião protagonizada por alguns dos clubes mais poderosos da Europa, através da criação de uma Superliga, tem sido alvo de críticas, que das duas uma: ou se devem a uma forma muito tradicionalista de ver o futebol, recusando a indústria, ou a uma tentativa de criar narrativas ao serviço de interesses diferentes dos que vão controlar esta competição e a distribuição da receita que ela vai gerar. Claro que ambas as interpretações são válidas. Mas a nova Liga dos Campeões parece-me ser um esforço assinalável no sentido de manter uma prova de que todos gostamos, nela incluindo todos os melhores clubes mas também alguns que não são assim tão ricos – como os nossos... É um compromisso? É, claro. Sejam bem-vindos ao Mundo real.
Também eu gostava da Taça dos Campeões Europeus antiga, exclusivamente disputada por campeões nacionais, por eliminatórias, correndo o risco de ter um Manchester City-Bayern ou um Inter-Atlético Madrid logo à primeira, com todos os jogos à quarta-feira. Eram uma festa, as quartas-feiras europeias. Se calhava, até faltava às aulas à tarde para ir com o meu pai, o meu tio e uns primos a Lisboa ver a bola. Se não calhava, começava a ouvir relatos aí pelas duas da tarde – que em Itália e no leste europeu jogava-se à tarde –, ficava colado ao rádio pela noite toda, enquanto a RTP (canal único) transmitia a noite de cinema, à espera do Remate, lá para a meia-noite, com a esperança de poder ver quatro ou cinco resumos – basicamente os dos jogos efetuados em Portugal, se os presidentes dos clubes deixassem entrar as câmaras, e aqueles que a Eurovisão se lembrasse de fazer circular. Isto foi há 35, 40 anos. E o Mundo já não é assim.
Já há tempos aqui expliquei que podemos optar pode devolver o futebol ao amadorismo e impedir os melhores futebolistas de serem devidamente recompensados, como o são todos os melhores do Mundo em qualquer profissão. E então, sim, mandamos à fava o futebol-indústria. Acontece que este é um Mundo livre – e se a FIFA, a UEFA e os maiores clubes decidirem reger-se pelas normas de pureza e amadorismo que vocês podem encontrar nos clubes da vossa terra, nos regionais, ou nas camadas jovens, nos jogos dos vossos filhos, haverá sempre a hipótese de outros formarem uma associação – a Superliga – que resgate o futebol-indústria, que explore o futebol como negócio e recompense os melhores jogadores como eles merecem. E deixem-me dar-vos uma notícia: no dia em que isso acontecer, vocês vão ser os primeiros a sentar-se frente à TV, a pagar o serviço de “pay-per-view”, de forma a conseguirem ver os jogos do Cristiano, do Bernardo, do Mbappé, do Haaland, do Messi, do Salah, do Lewandowski. Porque eles são profissionais, é assim que eles ganham a vida, e não vão hesitar no dia em que os colocarem entre a hipótese de seguir o caminho atual ou voltar a esse passado de que alguns dos mais velhos entre nós ainda se lembram com uma saudade inversamente proporcional ao que sentem os jogadores desses anos quando reparam que não têm nada de seu.
Portanto, há que ter isto muito em conta. Ter saudades é uma coisa boa. Ser saudosista já não tanto. O que nos deixa com a segunda razão para objetar à nova Champions: o controlo. Basicamente, o que vai estar em causa no futebol-indústria nos anos que aí vêm é quem vai controlar a receita para depois a redistribuir. A vantagem da Superliga era a eliminação dos intermediários – FIFA, UEFA... –, aumentando o bolo disponível. Mas convém pensarmos se isso é mesmo uma vantagem, já que, com todos os defeitos que seguramente têm, como a ganância, por exemplo, a FIFA e a UEFA ainda são a única forma de nos garantir o livre acesso de todos. Enfim, o mais ou menos livre acesso de todos, porque para manter os pesos pesados no barco foi preciso ir criando cada vez mais classes: os ricos e poderosos vão em primeira, pode ir ao convés e à piscina (fase de grupos) sempre que lhes apetecer, têm all-inclusive, mas os que vão em económica, em cabines sem janelas e abaixo da linha de água, só lá chegam se alguém estiver distraído e têm de pagar por cada café. Estes têm sempre pela frente um caminho tortuoso, mas a esperança de lá poderem chegar. E a garantia de que, escudados na proteção que lhes é dada por a prova ser organizada pela UEFA, na qual se ramificam as federações nacionais e os respetivos estatutos de utilidade pública, poderem beneficiar de parte da receita, mesmo que lá não cheguem.
Sou, há quase 30 anos, defensor da ideia de uma Superliga – organizada pela UEFA. Já o era quando a UEFA criou a Liga dos Campeões, que foi a primeira medida no sentido de evitar que os maiores clubes fugissem e a fossem organizar eles mesmos. Já se sabia, desde os primeiros dias, que este caminho iria apertar – Marx explica isso, para quem quiser dar-se ao trabalho de o ler sem dogmas. A nova Liga dos Campeões prevê o aumento de 32 para 36 equipas na fase de grupos, que passará a ser jogada em duas “pools” de 18, garantindo a cada equipa dez jogos, cinco em casa e cinco fora, contra dez adversários diferentes distribuídos por escalões. Isto é bom? Depende. Haverá datas para tanto jogo? Já não valem aqui as críticas que a mesma UEFA fez ao Mundial bi-anual de Wenger e da FIFA? Lá está o cinismo na questão do controlo da receita: os defeitos que valem para ti já não valem para mim.
Estranhamente, o que tem vindo a ser mais contestado é a forma de atribuição destas quatro vagas extra. Para quem irão? Uma para a quinta nação do ranking – de momento a França –, que passa a poder meter lá quatro equipas, tal como os quatro países à sua frente. Outra para a equipa que tiver feito melhor na edição anterior e não esteja automaticamente qualificada. E as outras duas para os dois melhores clubes do ranking a cinco anos que também não estejam automaticamente qualificados. É a proteção aos gigantes a ganhar corpo? É, sem dúvida. Mas não é isso que queremos? A Liga dos Campeões, por si só, não é uma forma de colocar os melhores sempre uns contra os outros? Se pudermos, não devemos evitar que lá faltem o FC Barcelona, a Juventus, o Manchester United, só porque tiveram um mau campeonato – desde que ainda sejam dos mais fortes da Europa?
A garantia de que teremos os mais fortes em ação na melhor prova de clubes do Mundo é uma boa medida. E a crítica que devia ser feita à prova é a única que ainda não ouvi nem li. É que o mais decisivo aqui vai ser a forma como decidimos quem são os mais fortes. E nesse aspeto, o dos rankings, a UEFA está muito atrasada e tem muito a aprender e a evoluir.
Como me lembro das quartas-feiras europeias - sempre à espera das vozes míticas da rádio (saudade ou saudosismo?) - e das goleadas que os nossos clubes davam aos cipriotas, islandeses, malteses (ou eliminações inesperadas, como a do FCP frente ao Wrexham, clube galês, então na IV divisão inglesa, ou do SCP frente ao Neuchatel Xamax para as meias finais da Liga dos Campeões), ou dos golos cantados... Mas o mundo pula e avança e, hoje, se queremos futebol indústria temos de ter a capacidade de renovar. Nisto tudo só tenho uma dúvida: o ano civil passará a ter mais que 365 dias?
Algures entre o amadorismo que já não faz sentido e os milhões, milhões e milhões que dominam o futebol atual (e que faz tão pouco sentido como o amadorismo) há de estar o termo certo para uma competição que seja mais inclusiva sem perder o seu carácter de grandeza, incluindo pelas equipas de topo que permite reunir.
Não faz sentido haver quatro representantes de um país e os campeões de outros países irem para outras competições.
Todos os campeões deviam ter acesso à champions, nem que para isso fosse preciso limitar a dois o número de representantes dos países mais fortes. Lirismo? Pois será, mas é a competição que defendo. Em vez de mini campeonatos entre equipas inglesas e espanholas.
O futebol vive numa bolha em que se incluem outras modalidades que pagam milhões aos atletas. A máquina está oleada pelas finanças e não pelo desporto. A discussão sobre este absurdo ultrapassaria a esfera desportiva, é mesmo uma questão quase universal que não será para aqui chamada. Mas cujos reflexos são visíveis na transformação do futebol numa coisa qualquer que muitas vezes não chega a ser entendível.
Preferia uma liga dos campeões mais terrena e menos galáctica. Mais democrática, mesmo que mais pobre. Mas reconheço que no contexto atual é praticamente impossível.