O labirinto de Amorim
Rúben Amorim disse no sábado em conferência de imprensa que se sentia “perdido” e teve ontem a oportunidade de provar que falava verdade, descaraterizando a equipa que levou ao Dragão.
Palavras: 1231. Tempo de leitura: 6 minutos.
Estão a ver os labirintos, aqueles quadros que saíam nos jornais e nos livros de passatempos que levávamos para a praia para nos entretermos entre mergulhos? Agarrávamos num lápis e procurávamos um caminho para o centro, quase sempre por tentativa e erro. Pois bem, Rúben Amorim, que no sábado tinha confessado aos jornalistas que estava mais perdido do que eles a propósito do futuro, meteu-se num desses labirintos, privando-se da visão panorâmica que lhe permitisse achar o caminho para sair do Dragão. O Sporting entrava na 31ª jornada da Liga com sete pontos de avanço sobre o Benfica, a precisar de fazer cinco nos quatro jogos que lhe restavam, com alguma margem de manobra, portanto, e com a noção de que a sua identidade lhe permitira ser a melhor equipa da prova até aqui. Tinha estado em vantagem em todos os 30 jogos da competição, na segunda volta somava 12 vitórias e um empate, mas mesmo assim entrou à procura de uma nova forma de ser, de uma identidade diferente. E correu sérios riscos de perder contra um FC Porto não brilhante mas bem afinado estrategicamente. Acabou por empatar, porque a dada altura Amorim sacou da borracha e apagou o caminho que escolhera, aproximando a equipa daquilo que ela é e não das contra-medidas a que ele a tinha forçado até ali.
Não creio, de todo, que a má exibição do Sporting durante os primeiros 60 minutos do clássico de ontem se tenha devido à viagem de Amorim a Londres, conforme foi perguntado de forma insistente ao treinador no final da partida. Houve muitos outros fatores a ter em conta, todos mais relevantes, a começar por um FC Porto bem montado, mas a razão fundamental parece ter sido a falta de crença de Amorim no seu plano original. No final, quando lhe perguntaram pelas razões que o levaram a dar a estreia ao promissor Martim Fernandes na lateral direita, quando a maior parte dos palpites e a história recente levavam ao desvio de Pepê para ali de modo a colmatar a ausência de João Mário, Sérgio Conceição explicou-a com a falta de vontade de mexer em duas posições e com aquilo que Pepê podia dar – e deu – entre linhas na frente. Amorim fez o contrário. Não é novidade que o técnico leonino sente o desconforto de Nuno Santos nos jogos em que, por força da valia do adversário e da presença de Geny Catamo do outro lado, precisa de ser um ala mais baixo no campo, para manter a linha de quatro atrás no início da organização defensiva: o canhoto foi titular em 33 dos 50 jogos da época, mas só entrou de início em dois dos dez desafios contra Benfica, FC Porto e Atalanta. Como não tinha Matheus Reis, Amorim mexeu em duas posições. Desviou Inácio para a esquerda e meteu Diomande como central daquele lado. E a equipa perdeu duas vezes. Perdeu primeiro porque, estando privada da alternativa ao jogo interior que lhe é dada pelos ataques à profundidade de Gyökeres, lhe faltou ainda a fluidez de um ala esquerdo – e isso não foi disfarçado pela abertura de Pedro Gonçalves na linha, a pedir movimentos interiores de Inácio. E perdeu sobretudo por lhe ter faltado a qualidade do pé esquerdo de Inácio no início do processo de organização ofensiva.
Não teve razão Sérgio Conceição quando disse, no final, que passou de uma situação em que podia ter goleado para um empate. O FC Porto não criou assim tanto, a ponto de justificar a sugestão de goleada, mas a abordagem com que entrou no jogo foi indiscutivelmente melhor do que a do adversário. Primeiro pela indefinição da pressão leonina, provocada pelo receio de ficar em um para um mais atrás – como Inácio foi escalado na ala para se opor a Francisco Conceição e não ia buscar Martim na saída de bola portista, Pedro Gonçalves começava por saltar em Zé Pedro, mas tinha de se preocupar depois com o lateral também, o que forçava Paulinho a largar Varela para tapar o central. E a coisa geralmente acabava com a bola a entrar em Varela, tendo este espaço para fazer subir a equipa, atraindo um dos médios dos leões e deixando o outro em franca inferioridade. Porque depois – e aí esteve a outra particularidade estratégica do FC Porto de ontem – Conceição projetava sobretudo os dois extremos e pedia a Evanilson, o ponta-de-lança, que baixasse frequentemente em apoio para se juntar a Pepê nas acelerações no espaço entrelinhas, entretanto alargado por uma atração do outro médio leonino para perto de Nico. Foi muito nesta superioridade no corredor central que o FC Porto se mostrou acima de um Sporting descaraterizado, mas a verdade é que nesse período os dragões só criaram três situações de golo – concretizando duas. E duas delas até nasceram de erros não forçados dos leões.
O jogo mudou depois por várias ordens de razões. Uma delas foi o regresso do Sporting à sua cara habitual, primeiro com a entrada de Gyökeres a dar-lhe a arma da profundidade, e depois com a chamada de Nuno Santos, a permitir-lhe ter largura na esquerda e qualidade a construir atrás, com Inácio e Quaresma. Outra foi o recuo do FC Porto, que assim que se viu ameaçado pelos sprints do sueco para o espaço nas costas passou a mobilizar mais gente para fazer as coberturas a quem ia com ele. Na segunda parte, que abordou com Francisco Conceição e Galeno a fecharem, à vez, por fora dos laterais, fazendo linha de cinco atrás, o FC Porto deixou de chegar à frente: fez apenas dois remates nessa metade de jogo, o último dos quais a 21 minutos dos 90. É verdade que o Sporting também não criara nada a não ser uma sucessão de cantos e livres laterais até aos dois golos que marcou num minuto, mas passou essa meia-hora final instalado no meio-campo portista, acabando premiado com um resultado que pode impedir a tremedeira que inevitavelmente se sucederia a uma derrota sem apelo como a que estava a desenhar-se. É certo que mesmo a derrota permitiria aos leões ser absolutamente donos do seu destino – bastar-lhes-ia ganhar dois dos três jogos que lhes faltam ou, em alternativa, em função da diferença de golos muito superior à do Benfica, até ganhar um e empatar dois. O empate, no entanto, até pela forma como foi arrancado, veio fazer grande diferença. E não por ter sido em recuperação, como no final sugeriu Amorim, mas por ter sido obtido quando ele finalmente recuperou a identidade normal e voltou a entrar no trilho certo do labirinto.
O clássico de ontem teve, por isso, essa dimensão-extra, essa capacidade de se projetar para o futuro. Mostrou a André Villas-Boas, o novo presidente do FC Porto, que há jovens valores como Martim capazes de entrar na equipa principal e funcionar como base da recapitalização necessária. E mostrou a Rúben Amorim que se tem a melhor equipa deste campeonato não é boa ideia escondê-la atrás de adaptações estratégicas que a diminuem. Uma e a outra destas verdades voltarão a ser postas à prova no encerramento da época, quando as duas equipas se defrontarem no Estádio Nacional na final da Taça de Portugal. Aí se verá quem entendeu melhor o labirinto.
A forma como explicou a superioridade no meio campo que o Porto teve precisamente pelo Inácio estar fora de lugar e a sucessão de eventos que isso causou foi brutal. Excelente artigo! Assim dá gosto perceber futebol!
Amorim perdeu com a Atalanta e com o Porto pela mesma razão: medo. O Sporting precisa de Nuno Santos na esquerda e Geny Catamo na direita, o melhor ala Português da atualidade, que tem lugar de caras na selecção Portuguesa e os dois jogadores que dão largura a esta equipa e um poder ofensivo fantástico. Quando treme, sem razão, porque tem melhor equipa e tinha nos dois casos, a equipa perde com isso. Já agora, Quaresma continua a mostrar ser o melhor central pela direita do plantel, de muito longe.