O jogo mais importante
O que me espanta não é que Ancelotti diga que o jogo mais importante é o próximo ou que Schmidt tire carga dramática à Real Sociedad, falando do FC Porto. O que me espanta é haver quem queira saber.
Fica aqui decretada uma coisa: o jogo mais importante é sempre o próximo, a não ser quando não dá jeito que o seja. Carlo Ancelotti, treinador do Real Madrid, que hoje (Eleven Sports 1, 20h) defronta o SC Braga na Pedreira e no sábado vai ao Estádio Olímpico de Montjuic medir forças com o FC Barcelona, diz que é o próximo, pois então. “Os jogadores estão a desfrutar para recuperar e chegar no topo ao jogo de amanhã [hoje], que neste momento é o mais importante”, afirmou em conferência de imprensa na qual recusou que vá fazer a equipa já a pensar nas exigências do clássico que aí vem. Mas Roger Schmidt, o treinador do Benfica que, também hoje (TVI e Eleven Sports 2, 20h) recebe a Real Sociedad, diz que não. “Os jogos mais importantes para o Benfica são sempre os jogos com o FC Porto e esta época já lhes ganhámos duas vezes, na Supertaça e na Liga”, respondeu. Então, afinal, em que é que ficamos? A coisa é simples de explicar. Os jogos de hoje são da Liga dos Campeões – e outra das banalidades que costumam sair da boca dos treinadores quando são forçados a estar frente a frente com caçadores de soundbytes é aquela que manda dizer que as competições são distintas e que os momentos vividos numas não interferem nas outras, o que, deixem-me que vos diga, é uma gigantesca treta. Na Liga dos Campeões, o Real Madrid está bem, com seis pontos em dois jogos, e o Benfica está mal, com zero pontos. Ancelotti tem a sua zona de conforto na Champions e é dela que quer falar, pelo que se o próximo jogo é da Champions e não da Liga, cuja liderança partilha com o Girona FC e vai pôr em risco no sábado, não vê razão para sair dessa zona de conforto. Já Schmidt estará forçosamente desconfortável se lhe pedem que se limite à Champions, pelo que vai em busca da sua própria zona de conforto. O que é que correu melhor ao Benfica esta época? Onde é que o alemão pode encontrar mais momentos capazes de tranquilizar e até empolgar os adeptos e os jogadores? No duplo confronto com o FC Porto, pois então. A resposta de Schmidt pode parecer desenquadrada até aos adeptos do Benfica que ainda se lembram da grandeza internacional do clube – e vi alguns casos nas redes sociais – mas, vamos a ver, não interessa nada, seja porque foi dada sobretudo para dentro do balneário, para focar os jogadores no “desfrutar” de que falava Ancelotti, seja porque é absolutamente irrelevante, por ter sido uma piada mal conseguida, que o humor não é um dos fortes do alemão. Aliás, Schmidt até esboçou uma risada depois de dizer o que disse. Como se o escrevesse no Twitter seguido de um LOL ou de um emoji a chorar a rir. É evidente que o jogo mais importante é sempre o próximo. E é ainda mais evidente que andamos todos a perder o tempo uns dos outros a tentar saber coisas tão irrelevantes como estas. Se o jogo mais importante é o próximo, se os resultados de uma prova vão afetar a moral na outra, se o importante é ou não é levantar a cabeça... Arre que é demais! Eu sei onde isto começou, pelo menos comigo – com outros há-de ter sido noutros locais, mas mais ou menos por volta da mesma altura. Foi num fim de tarde, há uns 30 anos, aí por volta de 1993, em que perguntei a Bobby Robson pelas movimentações de Figo, que saía muito da faixa lateral para aparecer por dentro, o que nesse jogo, não me recordo com quem, levou a inúmeras perdas de bola. Robson levantou-se num repente, foi a correr até uma das extremidades do plateau onde estava a mesa e, sempre falando naquele misto cómico de inglês e português que usava para se expressar, simulou as movimentações de Figo da ala para o meio, os dribles e as fintas de corpo, exemplificando depois aquilo que queria que ele fizesse. Aquele que teria sido um extraordinário momento de televisão, no entanto, foi inexprimível por quem estava em direto na velha sala de imprensa de Alvalade, que eram apenas os colegas da rádio. E, é possível que por causa do caráter invulgar da situação, passei a sentir algum constrangimento. Eu estava ali por desporto – trabalhava no Expresso, perguntava por curiosidade, para desfrutar do privilégio de estar à frente dos treinadores – mas acabava por prejudicar o esforço de quem tinha de escrever para o dia seguinte e precisava de um título ou de quem estava em direto e precisava de um soundbyte. Com a chegada das televisões, a guerra desequilibrou-se: nestes 30 anos, toda a gente, jornalistas e protagonistas, se moldou à cultura do soundbyte. Do lado de cá já não se pergunta e do lado de lá já não se responde. Enche-se o ar com afirmações que servem propósitos diferentes numa autêntica conversa de surdos. Quem pergunta quer sobretudo polemizar, um título de roda-pé, e quem responde ou quer fugir às polémicas ou falar para dentro do grupo. E eu perdi o interesse.
As contas e as expectativas. As contas para hoje, na entrada em ação de SC Braga e Benfica, são simples: é ganhar. Estão, contudo, moldadas por expectativas públicas diferentes, por uma espécie de “benfiquismo sociológico” que é o espelho do “madridismo sociológico” tanto em voga por estes dias em Espanha. No caso do Benfica valoriza-se a possibilidade de poder ficar a apenas um ponto do segundo lugar caso ganhe hoje, no do SC Braga só o sonho de defrontar um gigante, passando por cima do facto de, por mais improvável que pareça, a vitória poder encaminhar a equipa para uma hipótese real de qualificação. O Benfica entra neste duplo confronto com a Real Sociedad na esperança de que o Inter some seis pontos nos dois jogos com o RB Salzburgo e a saber que tem de entrar para as duas jornadas finais com vantagem no confronto direto com os bascos. O ideal era ganhar os dois jogos, mas certamente não haverá qualificação a não ser com uma vitória e um empate, com quatro pontos que deixariam os encarnados a precisar de ganhar fora ao RB Salzburgo e de, na última jornada, fazer melhor em casa com o Inter do que a Real Sociedad tenha feito antes em San Siro. Não está perdido, mas não será pera doce. O SC Braga até tem a vida mais sorridente, porque foi ganhar a Berlim. É certo que perdeu em casa com aquele que pode ser o adversário na luta pela qualificação, que é o SSC Nápoles, mas entra no duplo confronto com o colossal Real Madrid na expectativa de que qualquer ponto seja um acrescento face àquilo que hão-de somar os napolitanos frente ao mesmo adversário – e até ver já perderam em casa. A realidade é que até um ponto nos dois jogos com o Real Madrid e uma segunda vitória contra os alemães, agora em casa, deverá deixar o SC Braga em condições de ir a Nápoles, no último dia, lutar pela qualificação.
A jogar às deixas. O Tottenham isolou-se no topo da Premier League graças à vitória ontem obtida contra o Fulham (2-0) e ao empate que o Arsenal tinha cedido na visita ao Chelsea, no fim-de-semana. Não há muito mais palavras para elogiar o trabalho descomplicador de Ange Postecoglu, que conseguiu aproveitar o contexto de ausência das competições da UEFA para transformar uma equipa normalmente perdedora num coletivo capaz de responder às tarefas que lhe surgem pela frente, jogando quase sempre com os mesmos onze. Van de Ven e Vicario têm estado a um nível que não se lhes via – ainda ontem o italiano negou o 0-1 a Palhinha com uma defesa monstruosa – e na frente a ligação Maddison-Son funciona tão bem como a que o coreano tinha com Kane. E a dúvida cresce. Estará este Tottenham à altura? Poderão os Spurs continuar esta saga e repetir o feito do Leicester City de Ranieri? Continuo a achar isso muito difícil, quase impossível. Ainda ontem se viu que esta é uma equipa que joga sobretudo às deixas. Os 2-0 ao Fulham foram construídos em cima de dois erros na saída de Bassey, um esquerdino que Marco Silva teve de fazer alinhar como central direito devido à ausência de Diop, o habitual titular ao lado de Ream. O Tottenham soube aproveitar, sim, com uma pressão e um posicionamento sempre bem trabalhados no meio-campo adversário – o tempo para se treinar é o que mais se tira da ausência da UEFA – mas o dia chegará em que também os Spurs terão ausências. E aí, sim, se verá o que valem.