O jogo dos disfarces
O Manchester City de Guardiola levou muito a peito a necessidade de se disfarçar taticamente a cada desafio e mascarou-se de equipa amarrada pelo peso de uma final. Ganhou, que era o mais importante.
O Manchester City completou em Istambul a tarefa a que parecia estar destinado neste final de época, o histórico “treble” que o equipara ao United e que coloca Pep Guardiola no trono até aqui exclusivo de Alex Ferguson, mas fê-lo, não diria com a negação de si mesmo, porque não é possível negar o bom futebol numa equipa com tão brilhantes executantes, mas numa noite em que ficou longe do que tinha mostrado, por exemplo, nas meias-finais, contra o Real Madrid, tanto esta época como na anterior – e com resultados diversos. A final de Istambul foi diferente, é verdade. Foi um jogo incrivelmente complexo, porque do outro lado estava um adversário apesar de tudo mais preparado para essa estranha modalidade que é o contra-futebol do que o Real de Ancelotti. E é uma modalidade ainda mais complicada porque já se sabe que com o City de Guardiola raramente aquilo que parece é e as adaptações têm de ser feitas em movimento. No City, tudo é disfarce. O normal é os defesas-laterais subirem pelo corredor em momento ofensivo? Pois bem, no City já não costuma ser assim, mas nunca se sabe. Ontem, Stones defendia como lateral à direita e atacava como médio interior de um losango que tinha De Bruyne do outro lado e Gundogan como ponto mais avançado, ao passo que o outro lateral, Aké, era central quando a equipa atacava. Face à linha de cinco que o Inter tem sempre em momento defensivo, Guardiola abdicou de contrapor o seu habitual quinteto atacante – Bernardo, De Bruyne, Haaland, Gundogan e Grealish – no 3x2x4x1 ofensivo a que costuma recorrer, trocando-o por um 3x1x2x1x3 que retirava o criativo belga da zona de ação dos centrais e sacrificava Gundogan a Brozovic. A questão é que o Inter de Inzaghi mostrou a coragem que não se lhe adivinhava: avançou Barella para a linha de Lautaro e Dzeko na altura de pressionar, inventando logo ali um três para três com Akanji, Rúben Dias e Aké que causou algum desconforto à saída inglesa, e depois encaixava Darmian, um dos seus defesas-centrais, nas deambulações atrasadas de De Bruyne. Em resultado disso, anulada a criatividade tática inicial de Guardiola ao fim de uns 10 minutos pela capacidade do Inter para o contra-futebol, o que nos sobrou foi um jogo amarrado. Taticamente complexo, sim, mas até algo aborrecido para o comum dos mortais.
Um seis é um nove ao contrário. Se andou meio mundo a queixar-se durante anos de que o City não podia ser campeão europeu porque não tinha um verdadeiro nove, se este ano apareceu esse nove, corporizado no deus viking que é Haaland, autor de 52 golos em 53 jogos, quis o futebol que a vitória na final surgisse praticamente sem recorrer a ele, tão longe ele andou sempre da ação. E que o golo decisivo tenha sido marcado por Rodri, o seis, o médio-defensivo que foi o mais surpreendente ausente da final de há dois anos, perdida pelo City para o Chelsea no Dragão. Foi o cúmulo do disfarce, porque um seis é um nove ao contrário, mas a finalização de Rodri, depois da combinação entre Akanji e Bernardo ter sido aliviada para a entrada da área, foi notável de precisão. O Inter baixara em demasia para proteger a sua baliza, tinha gente a mais na área, arrastada pela movimentação ofensiva de um central adversário, mas Rodri viu a bola ali à espera e manteve a calma e a presença de espírito para entender que a barreira formada por Çalhanoglu e Darmian era suficiente para tirar a Onana a visão do lance e teve depois a precisão necessária para meter o remate entre os dois e o poste.
As finais de Lukaku. Não é possível não gostar de Lukaku, naquele seu jeito de gigante sempre bonacheirão e emotivo. Suplente precisamente por não se encaixar tão bem numa ideia de contra-futebol que convém mais a Dzeko, ao fim de uma hora acometido de cãibras de tanto correr sem bola, o belga tem na equipa um efeito devastador, porque lhe dá uma plataforma a partir da qual pode recomeçar mais à frente. Foi preciso ele entrar para Rúben Dias ter de começar a pensar mais na vida. Mas depois há a parte que a fatalidade desempenha na vida do gigante belga. Há três anos, foi com um autogolo dele que o Inter perdeu a final da Liga Europa para o Sevilha FC. No Inverno, depois de aceitar ir a jogo em condições físicas que não o recomendariam, falhou uma mão cheia de golos cantados que acabaram por custar a saída da Bélgica do Mundial, às custas de Marrocos. Ontem, não só se deixou apanhar por uma bola que Di Marco atirou primeiro à barra e recargara depois para a baliza, desviando-a do objetivo, como acertou depois em Ederson, ao minuto 89, com um cabeceamento que tinha tudo para relançar o jogo em prolongamento. Não é possível não gostar de Lukaku, mas é aceitável que se diga que finais não são coisa que ele deva jogar.
O fim dos fantasmas. E Guardiola ganhou finalmente uma Liga dos Campeões longe de Messi e do FC Barcelona. Tenha sido a final um jogo melhor ou pior, mais ou menos espetacular, com mais ou menos Inter – e os italianos até acabaram com um índice de Golos Esperados (xG) superior (1,55 a 0,80) –, é justo que se diga que o City é a melhor equipa europeia há já algum tempo. Já era na época passada, quando perdeu a meia-final com o Real Madrid por causa de cinco minutos que ninguém consegue explicar a não ser com recurso ao misticismo. Já era há dois anos, quando perdeu a final do Dragão com o Chelsea. O jogo de ontem deu a machadada final num fantasma e pode contribuir para que se comece a discutir outro. Morre a ideia de que Guardiola só ganha no Barça, permitindo que toda a gente olhe para ele como o que ele é, que é o treinador mais importante do futebol europeu de hoje. E devíamos começar já a debater o outro, que ainda ontem ouvi que o City só ganha porque gasta muito dinheiro no mercado e os fundos do Abu Dhabi dão ao treinador tudo o que ele quer. Gasta, é verdade. Nas sete épocas de Guardiola, o City investiu 1.238 milhões de euros em transferências, tendo recuperado 573 milhões em vendas. São 665 milhões de investimento, a uma média de quase 100 milhões por ano, algo que deve ser atenuado pelo facto de quase metade desse valor (43 por cento) ter sido despendido nos primeiros dois anos. Mas aqui há que fazer “benchmark”. Nas mesmas sete temporadas, o Manchester United gastou menos 69 milhões de euros (total de 1.169 milhões investidos) mas recebeu menos 181 milhões. Feitas as contas, o saldo do United é de 903 milhões de euros investidos. O do Chelsea de 807 milhões (1.621 investidos contra 814 recuperados). O do Paris Saint-Germain de 583 milhões (1.029 menos 446). E até o do FC Barcelona é de 456 milhões (1.277 menos 821). O City gasta muito? Sim. Mas quem o não faz?
Nota - As Conversas de Bancada vão hoje de férias. Esta foi a última edição regular de 2022/23, ainda que eu não exclua a possibilidade de vir a escrever umas linhas antes e depois dos jogos que faltam à seleção nacional. De qualquer modo, a partir de amanhã, o palco aqui irá para o projeto Reis da Europa, que espero que apreciem.