O jogo dos adeptos
Os incidentes verificados em Alvalade antes do clássico exigem uma explicação, para que não se generalize a ideia de que ir ao futebol é coisa perigosa. Não por defesa da tribo, mas de todo o setor.
Já se passaram 36 horas e não há nota pública de nenhuma tentativa, nem do Sporting, em primeiro lugar, nem da Liga, em segundo mas fundamental, para tomar conhecimento mais detalhado do que se passou nas artérias próximas ao Estádio José Alvalade antes do Sporting-FC Porto e envolveu uma brutal carga policial sobre os adeptos que por ali estavam, dizem eles que em amena confraternização, alega a polícia que envolvidos na nada nobre arte do arremesso de cadeiras em direção às forças da ordem. Nestas coisas, é banal a diabolização dos “malandros das claques”, dos marginais que vivem do crime organizado à volta do futebol, que chegam a marcar confrontos entre eles e obrigam a polícia a desviar para esses eventos forças que fariam mais serventia noutros locais. Contudo, quem apareceu a queixar-se agora – e o Twitter está cheio de partilhas de imagens de marcas dos incidentes, uma das quais ilustra este texto – não foram os cabeças rapadas do costume, mas sim um rol de cinquentões cuja falta de cabelo se deve à idade e não às opções políticas ou ao posicionamento social mais radicalizado. E deixem-me que vos diga uma coisa: os primeiros não têm menos direitos do que os segundos, mas quando estes também começam a apanhar instala-se em mim a ideia de que ir ao futebol não é uma coisa segura. Não posso obviamente saber – nem eu, nem o Sporting, nem a Liga – se aquilo a que o comandante da força policial chamou “intervenção musculada” teve ou não razão para ser desencadeada nos termos em que o foi. É por isso que não creio que o Sporting – ou, insisto, a Liga – possa neste momento emitir o comunicado que alguns adeptos estão a exigir, um comunicado de defesa dos seus e de condenação imediata da ação da polícia. Não pode fazê-lo, sob risco de ter de o engolir mais tarde. Mas o que se passou foi demasiado grave e teve na perceção do público um impacto tal que deixa de ser uma questão de tribo – a não ser que nos refiramos à tribo dos que, inconscientes, continuam a ir aos estádios e a estar com os amigos antes e depois, como se isso implicasse o perigo de levar com uma bala de borracha na face ou ver a cabeça aberta à bastonada. O que está aqui em causa extravasa em muito as queixas dos sportinguistas face ao tratamento que lhes é dado pela direção de Frederico Varandas, a divisão entre os adeptos das centrais e os das claques, ou entre adeptos verdadeiros e “croquetes”. Da mesma forma que extravasa em muito a noção generalizada na sociedade de que as claques estão repletas de delinquentes que só querem armar confusão, para quem a porrada é um modo de vida e o cassetete uma extensão natural do braço. Faço parte de uma geração que viveu uma mudança de paradigma que ainda penaliza o futebol de hoje: quando eu era miúdo, o meu pai deixou de me dizer que naquele dia não podia ir com ele por ser um jogo “de grande confusão”, para me levar a todos os jogos, desde que fosse para “longe das claques”. O que temo é que os pais de hoje deixem de levar os filhos de todo, por temerem o risco de levarem com uma carga policial vinda do nada. E, repito, não estou a dizer que foi isso que aconteceu. Estou a dizer que, em defesa de todo o setor, o Sporting em primeiro lugar, a Liga em segundo e fundamental, já deviam ter vindo descansar o seu público-alvo, exigindo um rigoroso inquérito feito por uma comissão independente ao que se passou ali. O risco da inação é só um: o de alienarem cada vez mais os seus... já nem digo só adeptos, digo clientes para que quem adormece e acorda no mundo corporate entenda melhor. E isso, no caso de um clube, pode refletir-se na falta de apoio, mas no caso da Liga terá efeitos na aceleração do esvaziamento gradual e contínuo dos estádios a que temos vindo na assistir. Na minha maneira de ver as coisas, isso é um problema sério. Para a Liga e para os clubes que a compõem também devia sê-lo. A não ser que já tenham adotado uma variação da ideia que circulava nas redações há uns dez anos, antes de eu ter deixado de as frequentar. Na altura, dizíamos a brincar que “para a administração, os funcionários da publicidade representavam a receita, os do marketing a expansão e os jornalistas eram apenas os custos”. Temo que para a Liga a malta que ainda vai ao estádio em vez de se concentrar frente às TVs a quem já foram vendidos os direitos seja como os jornalistas para os jornais de há dez anos: uma chatice que só dá trabalho e custa dinheiro. Mas, tanto num caso como no outro, quanto mais os afastam mais se afundam.
Guardiolismo ou Dinizismo. “Pep” Guardiola e Fernando Diniz são dois dos treinadores mais criativos do futebol mundial por estes dias – juntar-lhes-ia, no tema criatividade, o inevitável Roberto de Zerbi. O facto de os dois se defrontarem na final do Mundial de clubes, o espanhol pelo Manchester City e o brasileiro pelo Fluminense, é suficiente para gerar algum interesse por um jogo que já valia pouco antes e passou a valer menos ainda quando foi aprovado e anunciado o novo Mundial de clubes, com 32 participantes e uma fase final a sério, sem os atalhos de que agora beneficiam os mais fortes. Em Jedá, na sexta-feira, estará em jogo algo além da honra de ostentar o título de campeão do Mundo durante um ano – até porque todos concordaremos que isto que se joga agora não é bem um Mundial. Poderemos ver que ideias táticas e estratégicas cada um dos dois traz para contrariar o outro. E quem vai levar a melhor neste um para um. É o suficiente para tornar esta final na mais interessante desde que por lá andou a última equipa portuguesa a jogá-la, há quase 20 anos.
Os Valdanos três ponto zero. Há mais de 20 anos, Juan Hidalgo, um espanhol que à data era presidente do UD Salamanca, tomou conta da maioria das ações da recém-formada SAD do Farense. A sua primeira aposta para treinador foi João Alves, que conhecia bem das passagens do português pelo clube espanhol. Mas, tendo este sucumbido à lei do chicote, Hidalgo virou-se para Espanha. O SC Braga já tinha explorado a conexão galega, com Fernando Castro Santos e, mais tarde, o adjunto deste, Alberto Pazos, sempre com resultados mais do que aceitáveis, pelo que nem o facto de Hidalgo ter escolhido um treinador que nem na II Liga tinha dirigido uma equipa chegou para motivar muita estranheza. A Faro chegou Ismael Díaz, um tipo de 34 anos, barbicha à Quijote, que encantou os meios do futebol português com frases ricas saídas do caldo de cultura extraordinário que era o futebol espanhol do final do século. Espanha vivia uma era marcada pelo avolumar da onda da discussão lírica do futebol, impulsionada por figuras como Cruijff, Floro e, acima de todos, Jorge Valdano, cuja prosa no El País quase superava tudo o que ele tinha feito como jogador – e estamos a falar de um campeão do Mundo de 1986. O futebol enchia-se de aspirantes a Valdano dois ponto zero – e disto até eu me confesso culpado, que por volta de 1995 ou 1996 criei uma coluna no Público a tentar replicar o mestre. Díaz, que é dele que falava, safou o Farense da despromoção em 2000 e partiu em direção ao horizonte como o Lucky Luke no final dos álbuns de Morris e Goscinny. Do esquecimento veio, para ele partiu. Nunca treinou nas duas principais divisões da Liga em Espanha, mas foi treinador de I Divisão em Portugal. Como Pablo Villar, o treinador que agora sai do FC Vizela, deixando a equipa em 17º lugar, ou Ruben de la Barrera, o homem que vem substituí-lo. A questão não é serem espanhóis ou virem ocupar as vagas dos treinadores que rodam no carrossel da Liga Portuguesa, porque não há muitas coisas que me aborreçam tanto como esse jogo das cadeiras em que os técnicos saem daqui e um par de semanas depois já estão ali. A questão é que não há nada que os recomende para trabalharem na divisão maior da sétima Liga da Europa. Villar tinha trabalhado na Eslováquia (sexto lugar) e na Lituânia (quinto). De la Barrera andou pelo Catar, pela Roménia (quinto lugar) e pelo terceiro escalão de Espanha, antes de fracassar na seleção de El Salvador. E a minha maior esperança é que na decisão de os contratar haja uma tentativa de encontrar uma espécie de Valdano três ponto zero. Porque a alternativa é a cedência a interesses bem mais obscuros.