O jogo das diferenças
A grande diferença entre o FC Porto e o Benfica esteve nas ideias para o que fazer com e sem a bola. A grande diferença entre o clássico e o dérbi esteve na utilização do modo-exterminador.
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Uma goleada num jogo grande não garante títulos a quem a consegue nem deles afasta quem a encaixa. Ainda ontem, depois dos 5-0 do FC Porto ao Benfica, mesmo aludindo à necessidade de mais exibições como aquela para no final da época “poder festejar” como quer, nem Sérgio Conceição sentiu nele a força para se lançar abertamente na busca de uma liderança que está a um total de 13 pontos de distância – sete para o Sporting mais seis para o Benfica –, nem o apologético Rui Costa deu a guerra como perdida à conta das feridas desta batalha, quando convocou os jornalistas ao parque de estacionamento para pedir desculpa aos adeptos e para garantir que “o título não se perdeu” ali. Assim sendo, se os últimos resultados gordos em jogos grandes, tanto o Benfica-Sporting da Supertaça de 2019 como o FC Porto-Benfica da Liga em 2010, se explicaram com o facto de estarmos perante equipas com dinâmica de campeão, para este é preciso encontrar um racional diferente. O FC Porto de André Villas-Boas ganhou tudo nessa época de 2010/11 em que goleou o Benfica no Dragão, o Benfica de Bruno Lage acabara de conquistar a Liga de 2019 na sequência de uma recuperação admirável antes de dar cinco ao Sporting no Algarve e conheceria depois um início de época fulgurante que levou a que se anunciasse a revalidação iminente de um título que meses depois, contudo, deixou fugir. O jogo de ontem não se explica assim. O jogo de ontem explica-se com o que se passou em campo. Explica-se com uma equipa portista completa e harmoniosa, algo que ela nem sempre tem conseguido ser, umas vezes porque os jogadores não se esfolaram e foram “de pantufas” para o campo, noutras porque o treinador não punha os homens certos no onze. E explica-se com uma equipa benfiquista que nunca soube bem aquilo que queria ser, sempre perdida na ideia de, com bola, a dar a Di María para um golpe de génio ou a Rafa para uma aceleração, e de, sem ela, justificar a fama de coletivo que pressiona alto quando a verdade é que não sabe fazê-lo de forma minimamente articulada. A diferença de cinco golos verificada ontem entre FC Porto e Benfica começa por estar na base do que é o futebol – a adequação de uma equipa às ideias que leva para o campo – e completa-se depois num aproveitamento quase perfeito do caudal ofensivo para construir um resultado gordo, sem perdões, por parte de um grupo capaz de meter em campo o modo exterminador. O FC Porto tinha uma ideia para a sua organização ofensiva – e ela esteve à vista no lance do segundo golo, por exemplo. A ideia passava por atrair a pressão do Benfica a um lado para, aproveitando o facto de essa pressão partir sempre uma equipa que não vai em bloco, depois acelerar pelo outro, como aconteceu nesse lance, que foi decisivo, porque pôs termo ao que até tinha sido uma reação interessante dos encarnados no final da primeira parte. E o FC Porto tinha uma ideia para a sua organização defensiva, que passava por condicionar o apoio dos médios benfiquistas à sua saída de bola: Conceição deixava os dois centrais mais ou menos à vontade, designando apenas Evanilson para os condicionar a eles e a Trubin, mas apertava assim que a bola entrava em Morato (com Francisco), em João Mário (com Pepê), em João Neves (com Nico), em Aursnes (com Galeno) ou em Rafa (com Varela). O Benfica, por sua vez, colocava em campo a ideia de sempre, no que tanto pode ser preservação de identidade como inadequação estratégica. Baixava um dos médios para auxiliar a primeira fase de construção, sempre feita em 3+1, disponibilizava os laterais para tentar dar uma via de saída, Aursnes mais dentro, para abrir Di María, Morato mais fora, para permitir mais jogo interior a Kokçu, mas falhava sobretudo no jogo sem bola. Porque nessa altura nunca entendeu que precisa de juntar mais as linhas se quer pressionar. O FC Porto ganhou porque foi melhor e goleou porque nunca condescendeu, nunca perdoou e foi excelente a definir no último terço. De acordo com os dados GoalPoint, o Benfica acabou o jogo de ontem com 11 ações na área adversária, face às 15 que tinha conseguido quinta-feira em Alvalade. É pouco. E permitiu 29 ao adversário, quando há três dias permitira 42 ao Sporting. E isso já é demasiado.
O jogo das culpas. O final do jogo nas hostes benfiquistas parecia o boneco do presidente da junta do Herman José. João Neves deu mais um passo no caminho da emancipação quando foi ele o desginado para, aos 19 anos, ir fazer o necessário ato de contrição à flash interview. Roger Schmidt encontrou justificações físicas, mentais e táticas para o descalabro e foi claro: “A responsabilidade é minha”. E Rui Costa, no fim, foi mais longe e pediu mesmo desculpa, alegando que ele é que tem de o fazer, na sua qualidade de “responsável máximo”. O debate alastrou como faúlha em mato seco: deve o Benfica despedir o treinador? A minha resposta é quase sempre a mesma: não. Schmidt tem problemas – mas na verdade sempre os teve. É nulo na preparação estratégica dos jogos, mas isso não impediu que a sua equipa já tenha tido momentos de fulgor, nomeadamente na primeira metade da época passada. O treinador era o mesmo – e o presidente até já disse que este plantel é melhor. Talvez seja. Está é menos adequado à ideia do treinador, que não teve a capacidade para influenciar as escolhas – ou para perceber de que escolhas precisava – nem para adequar a ideia a elas. Não fica fácil ir à procura de um culpado. Quem foi? O treinador, que não percebeu de que tipo de jogadores precisava para pôr a sua ideia em prática? Ainda o treinador, porque não entendeu que com o novo plantel precisava de uma ideia nova? Ou a administração, que não foi capaz de escolher jogadores que conviessem mais ao futebol que a equipa praticava. O jogo das culpas é sempre um exercício retórico vazio e pode aplicar-se até ao FC Porto. Por que é que os dragões, ontem tão superiores, estão tão longe do topo? Porque os jogadores não se empenharam? Porque o treinador tardou em acertar num onze e num sistema que lhes conviesse e passou meia Liga sem Nico ou com Pepê fora de posição? Porque a administração não lhe deu Otávio mais cedo e persistiu em aquisições que faziam zero sentido? Cada um que escolha a sua...
Que tipo de cansaço? Rúben Amorim acabou o jogo do Sporting com o Farense cansado – e não foi caso para menos. O Sporting cedo percebeu onde podia ferir os algarvios, metendo os avançados dentro e dando sempre dois homens a cada extremo de Mota através da saída com bola dos centrais exteriores, a juntarem-se aos alas na exploração dos corredores, e isso podia ter acabado com o jogo logo no período inicial. Mas os leões só chegaram ao 2-0 e depois ainda permitiram a recuperação. Pedro Gonçalves fez o 3-2 em cima do golo do empate, mas em vez de ser de empolgamento face à perspetiva de recuperarem a liderança isolada da Liga, a meia-hora final foi vivida pelos leões num estado de ansiedade difícil de explicar para quem tinha a receita do sucesso. No final, Amorim identificou o problema e falou de esgotamento. “Alguns [jogadores] não têm mais para dar”, revelou. A questão, porém, não pode ser só física. Dos que estavam a jogar ontem, apenas Hjulmand, Pedro Gonçalves e Gyökeres têm sido mais massacrados com utilização. Os leões têm esta época cinco jogadores acima dos 2500 minutos de jogo – além daqueles três há ainda Gonçalo Inácio e Adán – enquanto que o Benfica tem oito com mais do que os 2877 minutos de Gyökeres, o mais rodado dos leões. Sim, o modelo de jogo de Amorim pode ser mais exigente, não que o de Schmidt, mas do que aquilo que os jogadores de Schmidt têm metido em campo, mas isso não explica tudo. Há no Sporting um cansaço mental que as vitórias não têm ajudado a extinguir e que leva a equipa a alguns momentos de desligamento e desconcentração. É a receita contra isso que falta encontrar.
Os três mosqueteiros. Como na história de Dumas, em Arouca os três mosqueteiros também são quatro. E todos marcaram em Chaves, na goleada que permitiu à equipa de Daniel Sousa somar a sexta vitória nas últimas sete jornadas, exatamente antes de receber o Sporting. Este FC Arouca tem em Mujica um ponta-de-lança exímio na arte de explorar o espaço atrás das linhas defensivas adversárias, em Cristo um criativo de pelo na venta, em Jason um extremo de rara inteligência para encontrar os espaços por dentro e em Sylla um D’Artagnan que completa o lote com subtileza, porque ninguém está à espera dele. O GD Chaves não é um adversário a ter em devida conta, tantas são as facilidades que dá, mas a capacidade que esta equipa tem para verticalizar o jogo com passes progressivos desde os centrais, de laterais que gostam de ver o jogo de frente ou de médios com boa panorâmica sobre o campo já se tinha visto contra o FC Porto, por exemplo. Este FC Arouca é um caso sério nesta Liga e é assim que deve ser tratado.