O jogador-adjetivo*
Beckenbauer é um dos raros futebolistas que ganhou o direito a ser adjetivo. De um central que se mete em habilidades técnicas não se diz que acha que é o Beckenbauer, mas sim que é um Beckenbauer.
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Uma das razões pelas quais o meu Mundial preferido é o de 1974 é que na final de Munique se encontraram duas escolas, mais moderna a holandesa, ultrapassada – e porém vencedora – a alemã, mas ambas absolutamente marcantes para os 50 anos que se seguiram na história do futebol. A zona pressionante laranja foi o futuro, mas mesmo dentro do jogo antiquado, feito de marcações individuais, da RFA de Helmut Schön, havia uma particularidade que se transformou em tendência – a forma como o líbero lia o jogo e saía lá de trás a jogar com elegância, cabeça levantada, peito para fora e ombros para trás, bola colada à bota direita, de onde podia partir em tabelas curtas, toma lá-dá cá, ou em passes longos e certeiros, feitos com a parte exterior do pé – o que era uma novidade naquele tempo. Franz Beckenbauer, que morreu anteontem, é um dos raros jogadores que se transformou em adjetivo. Quando se vê um defesa-central a meter-se em habilidades técnicas para as quais não parece habilitado não se diz só que ele acha que é “o” Beckenbauer. Diz-se que ele julga que é “um” Beckenbauer, porque aquilo que Beckenbauer inventou tornou-se a forma moderna de desempenhar uma função que era antiga. O líbero, que tinha sido criado como modo de exaltação da cobardia num jogo de encaixes focado na anulação das armas do adversário, transformava-se agora num modelo de construção e de criação por ação de um homem a quem chamavam Der Kaiser desde o dia em que se deixou fotografar em Viena ao lado de um busto de Franz Joseph. Como acontecia sempre, Beckenbauer estava a ver mais longe, a escolher o lado vencedor. Percebeu logo que era fácil estabelecer paralelismos entre a vida do lendário imperador austríaco e o seu futebol de maestro, jogado de luvas e batuta, a dirigir os companheiros, muitas vezes só com o olhar. A última vez que ele assumira uma desvantagem competitiva tinha sido quando escolheu o Bayern e não o 1860, que era o maior clube de Munique na sua adolescência. Mas Franz não gostava do 1860 por causa do que lhe acontecera num jogo de formação, ainda com a camisola do Giesing, o seu clube de bairro, e deixou-se levar pelas emoções. Coisa rara, que ao longo da vida só foi fazendo nos sucessivos casamentos (três), mas que ajudou a mudar o panorama do futebol germânico. O Bayern Munique, que não era sequer presença regular na recém-criada Bundesliga, tornou-se com ele uma força dominante do futebol alemão e Franz Beckenbauer mostrou igualmente na seleção que estava ali para contar. Ainda a meio-campo, foi o melhor entre os alemães no Mundial de 1966, a ponto de ver Alf Ramsey, o selecionador inglês, mandar Bobby Charlton, o seu melhor jogador, marcá-lo homem-a-homem na final – o que o próprio Beckenbauer imitou, 20 anos mais tarde, quando na direção da equipa da RFA teve a infeliz ideia de pedir a Matthaus que tentasse anular Maradona na decisão do Mundial do México. Em 1970, a sua influência na equipa foi muito para lá da icónica fotografia que o mostra de braço ao peito, a jogar parte da meia-final com a Itália com uma clavícula partida. Nessa altura já Beckenbauer tinha sido campeão alemão (1969), mas foi depois disso que o seu futebol atingiu o pináculo da perfeição. Tricampeão da Bundesliga em 1972, 1973 e 1974, juntou à saladeira as Taças dos Campeões Europeus de 1974, 1975 e 1976, o Europeu de 1972 e o Mundial de 1974. Foi ainda o primeiro defesa a ganhar a Bola de Ouro, o que conseguiu em 1972 e 1976 – em 1974, curiosamente, perdeu para Cruijff. E tornou-se um dos exemplos de futebolista marquetizável, ao juntar-se a Pelé no Cosmos de Nova Iorque, por alturas do apogeu da entretanto extinta NASL. Fazia aí a transição para o que lhe restava de carreira no futebol, onde não teve, nem de perto nem de longe, a mesma importância – por muito que agora vos digam o contrário. Foi treinador, cargo onde exercia sobretudo uma espécie de magistério de influência que depois não lhe permitiu ter nas passagens por clubes o mesmo sucesso consolidado que conhecera na seleção, que levou à final do Mundial de 1986 e até à vitória em 1990, com a primeira equipa da Alemanha unificada desde a II Guerra Mundial. Foi dirigente, no Bayern, comentador, em diversos jornais e canais de televisão, e organizador, no Mundial de 2006. Mas o Beckenbauer que fica na história é o que mandava no campo de chuteiras calçadas. Só esse se tornou um adjetivo.
* Na verdade, na formulação em causa, Beckenbauer não é um adjetivo mas sim um substantivo-adjetivado. O que não ficava nada bem em título…
O estranho caso Casa Pia. O Casa Pia de Filipe Martins, disposto em 3x4x3, era uma equipa de solidez defensiva montada em cima de três centrais seguros e de um meio-campo guerreiro mas ao mesmo tempo criterioso, que depois se impunha pelas acelerações de atacantes como Godwin ou, mais recentemente, Jajá. Godwin levou-o o mercado, Jajá perdeu influência com a troca de treinador e de sistema. O Casa Pia de Pedro Moreira joga em 4x4x2 e continua a ser uma equipa de solidez defensiva, montada agora em cima de dois centrais que continuam seguros, de um meio-campo que será mais guerreiro ainda – daí o ocaso de Pablo Roberto, por exemplo – mas que permanece criterioso e de um par de pontas-de-lança fortes. Mudou o sistema, mudaram muitos jogadores, mas continua o mesmo DNA, visto na forma eficaz com que os gansos bateram ontem o Moreirense, por 4-1.
O (ainda mais) estranho caso Rafa. De repente, as redes sociais encheram-se tanto de posts acerca da presumível possibilidade de Rafa trocar o Benfica pelo Sporting, no final de contrato, que a coisa chegou à conferência de imprensa de Rúben Amorim. É curioso como se inverteu a ordem das coisas: já não se fazem posts acerca das notícias, agora fazem-se notícias acerca dos posts. Mas, tendo Amorim dito o que qualquer cidadão comum podia dizer sobre isso – que Rafa é bom jogador mas que a sua passagem para o Sporting é evidentemente impossível, seja por uma questão de finanças ou da aversão do jogador a situações mais badaladas –, o que me interessa neste momento é perceber como é que isso foi sequer tendência. E aqui há que aplicar a regra que manda perguntar a quem é que interessa o rumor. O problema é que ele pode interessar a todos os campos. Interessa a Rafa e ao seu agente porque, caso estejam com dúvidas acerca da mudança para o Médio Oriente de que se fala há meio ano, a suspeição de que poderia ir parar ao rival era suscetível de levar o Benfica a subir a parada para ele ficar. Interessará ao Sporting pela mesma razão, no sentido de que poderia levar os encarnados a despender mais recursos na manutenção do jogador. E pode ainda interessar ao Benfica por funcionar como atenuante no final da época, caso o jogador acabe mesmo por sair a custo zero: “ficámos sem ele, mas o Sporting também falhou a sua contratação”. Posto isto, é só escolher o campo.
O Messi e o Ronaldo “nos melhores anos”. O FC Porto volta hoje ao campo, para defrontar um Estoril que já lhe ganhou duas vezes esta época, agora em jogo da Taça de Portugal (20h45, RTP1). O momento não é fantástico, que os dragões acabam de ceder mais dois pontos na Liga e o que ontem disse Sérgio Conceição, pela sua insistência na importância dos duelos, da atitude competitiva e da intensidade, não me leva a crer na mudança de chip de que a equipa precisa para impor a sua qualidade. Por outro lado, seria estranho o Estoril ganhar três vezes ao FC Porto numa mesma época e a visão que o treinador tem do seu grupo continua bem lá em cima. Para justificar a tardia afirmação de gente como Ivan Jaime ou Nico González, falou do necessário “percurso evolutivo” que todos têm de fazer. Todos, não. Cristiano Ronaldo ou Messi, aparentemente, entrariam logo na equipa, desde que “nos seus melhores anos”. Caso contrário também iriam amargar no banco.
Parabéns pelo artigo do Beckenbauer, o que eu ainda não entendi é o porquê de ser super Fã do AT no que diz respeito às suas análises do futebol dos anos 70, 80, 90 e discordar tanto das atuais 😔