Mexer onde faz falta
O Benfica é quem mais produz no ataque na Liga e contrata avançados, o Sporting é quem menos deixa produzir e mexe-se por defesas. Parece um contrassenso, mas se virmos com mais atenção não o é.
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É revelador que, até ver, neste mercado de Janeiro, o Benfica só tenha mexido no ataque, com a contratação de Marcos Leonardo confirmada e as de Prestianni e Rollheiser a avançar a todo o vapor, e que o Sporting só se tenha mexido por um defesa-central, no caso Rafael Pontelo. Podemos divergir nas razões que levaram a que isto sucedesse, se foi porque as oportunidades de contratar jovens talentos devem ser aproveitadas quer eles possam ser enquadrados logo ou não, se foi por assunção do fracasso com Arthur Cabral ou por antecipação das vendas de Diomande ou Gonçalo Inácio, mas – mais no Benfica do que no Sporting, que neste momento não se vê o jovem central ex-Leixões a entrar no onze leonino – a verdade é que as mexidas são para os setores em que as duas equipas estão a fraquejar neste sprint que se transforma em maratona que é a corrida ao título de campeão. E percebe-se melhor isso se colocarmos a nós mesmos duas questões. Qual das duas defende melhor? E qual das duas ataca melhor? No início da época, as respostas seriam umas. E agora, se calhar, já são outras. O início da Liga foi marcado pela segurança defensiva do Sporting, ainda hoje a equipa do campeonato com o mais baixo índice de golos esperados (xG) permitido aos adversários: soma um total de 13,2 e está à frente do Moreirense (13,9), do FC Porto (14,5) e do Benfica (15,4). A diferença entre leões e águias, contudo, já foi de uma magnitude bastante maior: até à nona jornada ela era praticamente o dobro (5,3 o Sporting, 10,2 o Benfica). O que mudou daí para cá? Pois foi a estabilização da linha defensiva encarnada, com Aursnes a lateral-direito e Morato a defesa-esquerdo. É curioso que o Benfica de Roger Schmidt fosse conhecido na época passada pela sua capacidade de defender bem na frente, de fazer a chamada contra-pressão bem alto no campo, e que neste momento, sem ter a mesma capacidade nesse momento do jogo, consiga fazer algo que há um ano o assustava, que é o controlo dos jogos sem bola, com segurança defensiva atrás. O Benfica, basicamente, defende melhor na linha em que está Aursnes: há um ano era à frente, agora é atrás. E é por isso que relativizo a ansiedade com que tanta gente encara a busca de laterais que ajudem a suprir a lesão de Bah ou a desilusão com Jurasek. Se está bem, não mexe... E está bem até por causa do guarda-redes, pois Trubin é o segundo guarda-redes com maior total de golos salvos neste campeonato, com um PSxG-GA de 6,2 que só é superado pelos 8,6 de Ricardo Velho, do Farense. Um pouco por isso mesmo, sem ter a melhor defesa, o Benfica tem a defesa menos batida da Liga. Mas olhemos para o ataque. A equipa que mais cria situações de golo no campeonato é o Benfica, com um índice de golos esperados (xG) de 35,8, à frente dos 33,2 do SC Braga e dos 32,3 do Sporting. Mas também aqui a diferença já foi muito maior: à quarta jornada, era quase o dobro (5,9 do Sporting para 10,7 do Benfica). O que é que mudou daí para cá (ainda que não necessariamente nesse dia)? Pois foi a dinamização das alas na equipa de Rúben Amorim, que já contava com o efeito da inclusão de Gyökeres na sua capacidade para atacar a profundidade e para receber jogo mais direto, mas também para aproveitar as ocasiões de que dispõe. O sueco não é só um fenómeno de força – é simultaneamente o jogador da Liga que tem melhor relação com o golo, tendo feito mais 3,8 golos do que o esperado (G-xG ligeiramente superior aos 3,7 de Banza). Mas Gyökeres já brilhava desde a primeira jornada. O que aconteceu a meio do campeonato foi a afirmação de Geny Catamo como ala direito, levando a que o Sporting passasse a ter nele uma via diferente de saída de trás e de superação da primeira zona de pressão adversária através do um para um – coisa que não lhe era dada por Esgaio, Nuno Santos ou Matheus Reis. Catamo foi titular contra o FC Porto (com Esgaio no banco) e não se sabe se o teria sido com o Benfica na Luz, porque estava lesionado. Mas é por isso que, ainda criando menos do que os rivais, os leões se centram sobretudo no que podem acrescentar atrás.
Ainda não é tarde. O FC Porto voltou a ceder nesta jornada, empatando com o Boavista em mais um jogo que, sim, é verdade, podia ter ganho com melhor definição, mas no qual voltou a não produzir o suficiente para que a vitória se tornasse uma inevitabilidade. Os cinco pontos de atraso para o líder a uma jornada do fim da primeira volta não são um desastre – de resto, tendo em conta o que a equipa tem jogado, são mesmo uma boa notícia. Mas também não são tão desdramatizáveis como Sérgio Conceição tem insinuado, quando recorda que já foi campeão partindo sete pontos atrás e que já perdeu um título com sete pontos de vantagem. A questão é que, neste momento, o FC Porto está a cinco pontos do Sporting e a quatro do Benfica e precisa que ambos fraquejem, o que é mais complicado do que anular essa diferença para um adversário só. Pode acontecer? Pode, ainda pode. Até porque os dragões receberão os dois rivais em casa na segunda volta. Mas o direito ao erro está extinto para uma equipa que enfrenta agora uma semana decisiva: primeiro a visita a um Estoril que já lhe ganhou duas vezes esta época, no campeonato e na Taça da Liga, e depois a receção a um SC Braga que o empate no dérbi do Minho deixa também sem hipóteses de errar se quer continuar a sonhar. São dois jogos decisivos, o primeiro porque ditará a continuidade numa prova – a Taça de Portugal – e pode marcar moralmente a equipa antes da entrada no segundo, onde tudo o que não seja a vitória pode implicar o aumento da desvantagem. Fundamental parece ser que Conceição olhe para os últimos jogos e ceda também. Ceda admitindo que a equipa melhora quando abre no 4x2x3x1 com o seu filho, Francisco, e Galeno, em vez de insistir naquele 4x2x2x2 com os médios-ala a jogar por dentro. Ceda admitindo que não se pode transformar em Otávio quem não é Otávio e permita, por exemplo, a Nico mostrar se as boas indicações deixadas na reaparição no Bessa podem ou não ter continuidade. O resto já não dependerá tanto assim dele, mas sim da administração ser capaz de dotar o plantel de soluções válidas para a linha de trás sem alienar aquela que é a mais-valia desta equipa, que é o guarda-redes.
O Lobo pioneiro. Ninguém sabe bem quando é que Zagallo inventou o 4x3x3 – ou sequer se, como reza a lenda, foi ele que o fez. O futebol era muito diferente naquela transição da década de 50 para a de 60. O extremo esquerdo do Botafogo a quem, pelo caráter trabalhador, tinham chamado a “Formiguinha”, só entrou na equipa que foi campeã do Mundo em 1958 porque Pepe se magoou, mas acabou por ser a ponderação necessária a uma linha atacante que tinha o estouvado Garrincha do lado contrário. Depois há quatro anos de escuridão até ao momento em que os holofotes voltaram a colocar-se em cima do Brasil, mas no título de 1962 Zagallo já não era só um extremo. Era já um terceiro médio, a jogar mais baixo, perto de Didi e Zito, de forma a compensar os movimentos ofensivos do lateral do seu lado, Nilton Santos. Onde é que nasceu a ideia? No Botafogo, que ambos os jogadores representavam? Na cabeça de Aimoré Moreira, o selecionador nesse Mundial chileno? Da iniciativa do próprio Zagallo, cuja clarividência veio a ser demonstrada mais tarde quando, instalado pela ditadura militar como selecionador, em 1970, no lugar do comunista João Saldanha, montou aquela que pode ter sido a seleção mais forte de sempre e se tornou o primeiro campeão mundial na dupla função de jogador e selecionador? Ninguém saberá muito bem. Certo é que Zagallo tinha uma certa tendência para pensar fora da caixa, algo que veio a demonstrar em 1976, quando foi para o Kuweit, tornando-se a primeira grande figura do futebol Mundial a explorar o mercado do Médio Oriente. Único tetracampeão mundial da história – era coordenador técnico da seleção que ganhou o Mundial de 1994, com o seu afilhado Parreira como selecionador –, esteve à beira do penta, em 1998, pois era ele quem dirigia a equipa na tarde do chilique de Ronaldo que acabou em coroação da França. Morreu aos 92 anos como uma das figuras históricas mais importantes do futebol brasileiro. Mesmo que tenha sido ele a inaugurar no país a forma de pensar o futebol à europeia.
Excelente texto. Parabéns pelo trabalho, sério, de investigação, análise e devida preparação.
Bom Ano de 2024.