O herói do povo
Vini Júnior ganhou o prémio The Best, a votação da FIFA para melhor jogador do Mundo, com um atropelamento nas escolhas dos jogadores e, sobretudo, do público. Haverá duas maneiras de ver futebol?
Palavras: 1216. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
A vitória de Vinícius Júnior no prémio The Best, atribuído pela FIFA ao melhor jogador de 2024, vai ser apresentada como a vingança dos justos face aos que, na Bola de Ouro, ostracizaram o extremo brasileiro do Real Madrid, dando o galardão ao médio espanhol Rodri, mas deve ser encarada, sobretudo, como a consciencialização de que há mais do que uma maneira de ver futebol – e de que nenhuma delas tem de ser melhor ou pior do que a outra. A Bola de Ouro foi resultado dos votos de um painel de 100 jornalistas. O FIFA The Best também tem votos dos jornalistas, um por cada associação-membro da FIFA, aos quais atribui um peso de 25 por cento do bolo, tanto quanto dá aos jogadores, aos treinadores e aos adeptos. E, curiosamente, no FIFA The Best, Rodri ganhou no voto dos jornalistas e até no dos treinadores, mas não foi sequer terceiro no voto dos jogadores e teve pouco mais de um quarto dos votos do vencedor na votação do público. Andamos a ver futebol de maneiras diferentes? É evidente que sim. E isso é interessante.
É claro que todos estes prémios não servem para muito mais a não ser para afagar o ego dos vencedores e aplacar a sanha justicialista dos seus maiores fãs, à cabeça dos quais estão os clubes que deles dependem para fazer receita. E foi sintomático que, depois de ter feito a barulheira infernal que fez quando resolveu faltar à cerimónia da Bola de Ouro, o Real Madrid tenha ontem comparecido em peso a um ato que era suposto ser feito por videoconferência mas que acabou por ter no palco o próprio Vinicius Júnior, o seu treinador, Carlo Ancelotti, e o inefável presidente Florentino Pérez. Os três aproveitaram o facto de já estarem no Qatar para jogar a final da Taça Intercontinental, hoje, contra o Pachuca, e fizeram os 15 minutos de carro que os separavam da Academia Aspire, onde estavam a ser divulgados os vencedores – e não, o ato não pode ser visto como uma causalidade inocente. É que, além de termos ficado a saber que o primeiro critério para o Real Madrid comparecer a cerimónias – mesmo às que são anunciadas como não estando abertas a convidados – é o estar pela vizinhança, que o segundo é ter um seu jogador como vencedor, ficamos também seguros de que Florentino está bem mais à vontade com estes critérios de votação do que com os que levaram à derrota do seu jogador na Bola de Ouro.
Na última assembleia geral do Real Madrid, o presidente torrou publicamente e frente às câmaras de TV os jornalistas “da Namíbia, do Uganda, da Albânia e da Finlândia”, que, como ele afirmou, “ninguém conhece”. “Bastava estes não terem votado para que Vinícius ganhasse a Bola de Ouro”, disse. Pois desta vez não houve críticas. Florentino está bem com o facto de, por exemplo, Luís de La Fuente, o selecionador espanhol, que toda a gente conhece porque até foi campeão da Europa, ter votado, por esta ordem, em Carvajal, Rodri e Yamal, esquecendo Vinicius. Não o incomoda que Morata, que é capitão da seleção espanhola e um ex-jogador do Real Madrid, tenha repetido por inteiro o voto do selecionador, como se este lhe tivesse chegado dos gabinetes. Nem o aborrece que Messi tenha acabado em sexto lugar, votado em primeiro pelos capitães das seleções de Anguila, Bangladesh, Chile, Fiji, Gibraltar, Ilhas Salomão, Laos, Lesoto, Malta, Samoa, Taiti e Tunísia, tudo gente que, em rigor, ninguém conhece. É que em Messi votou também o representante da Itália, Donnarumma. E ao voto será seguramente alheio o facto de o guardião do Paris Saint-Germain ter partilhado balneário com o astro argentino, antes de este emigrar para os Estados Unidos e a insignificante MLS.
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Que fique bem claro que não estou com estes apartes irónicos a diminuir o prémio ganho por Vinícius Júnior – só me rio da hipocrisia de Florentino e de um clube cuja grandeza devia torná-lo superior a estas coisas. Vinícius foi primeiro no voto do público, com mais de 1,1 milhões de votos, contra 264 mil de Rodri. Isso garantiu-lhe 13 pontos na votação final. Além disso, recolheu 617 votos dos capitães de equipa, quase o dobro dos recebidos por Rodri, que teve 373. E vão mais 13 pontos. Tanto nos selecionadores como nos jornalistas quem ganhou foi Rodri, com Vinícius em segundo. O espanhol teve 461 votos dos treinadores, contra 438 do brasileiro (mais 11 pontos para Vini) e nos jornalistas também se impôs, ainda que forma mais marginal: 543 a 538 e os onze pontos finais para o vencedor. Na compilação das quatro formas de voto, Vinícius Júnior acabou com 48 pontos, contra 43 de Rodri e 37 de Bellingham, o que levará uns a dizer que este é o formato ideal, porque “é mais democrático” – o que começa por ser o contrário do pretendido por Florentino, que impediria de votar os jornalistas a quem ninguém conhece, limitando esse direito, como todos os ditadores, à elite que pensa como ele –, e outros a defender que não, porque é aberto a quem vota mais com o coração e menos com a cabeça. Não tenho forma de definir qual é a maneira mais acertada de votar o melhor do Mundo, porque o futebol é feito para os adeptos e não podemos esquecer o que nele contam as emoções, mas tirando a política não há mais nenhuma área em que a votação popular defina o que quer que seja. Os Óscares não são atribuídos aos filmes mais vistos, os Emmies às séries com mais audiência, o Nobel da Literatura aos livros mais vendidos ou o da Medicina ao médico que tratou mais doentes.
O que esta disparidade nos evidencia é que há um herói do povo e outro da nomenclatura. Os treinadores e os jornalistas reconhecem a importância de um jogador como Rodri – e quem olhar para a queda do Manchester City desde que ele se magoou (oito derrotas em 18 jogos) concordará com esta visão mais, chamemos-lhe assim, elitista ou cientifizada. Os jogadores, mais atentos ao brilho individual, porque é isso que buscam verdadeiramente a cada vez que sobem a um relvado, e sobretudo os adeptos, que não vão ao estádio ver centrocampistas equilibradores mas sim atacantes capazes de rasgos que destruam a organização adversária, desprezam o jogo de Rodri e aclamam o de Vinícius. O que nos trouxe até aqui foi a evolução tática do futebol e, sobretudo, da maneira de o analisar. Há 40 ou 50 anos não se valorizava esse jogador que une setores simplesmente fazendo sempre o passe certo, por mais simples que ele pareça. Hoje já não é assim. Mas desenganem-se os que acham que o futuro do jogo está aí. Não está, que se estivesse podia passar a ser jogado por robots ou por uma qualquer inteligência artificial. As duas versões do melhor do ano são fundamentais para o futuro deste jogo. Pena é que o engajamento não nos permita aceitar isso como verdade incontornável.