O guião do futebol
O futebol pode satisfazer desejos de apreciadores de intrincados enredos de suspense dentro do campo. Mas fora dele, na gestão, está tudo cada vez mais previsível. O que não é mau.
Há dias em que tudo bate certo e nos leva a um epílogo que parece previamente desenhado, como se a realidade conspirasse para nos escrever um guião e no-lo colocar à frente dos olhos. Estão a ver aqueles livros em que só no final nos apercebemos que tudo nos conduzia àquele final em específico, os “page-turners” a que os autores conseguem manter-nos agarrados? Pois não é o caso. Aqui está tudo às claras – o que tem o efeito de satisfazer os que passam a vida a reclamar mais transparência e, feitas bem as contas, não é mau. Ou pelo menos tem sido bom. Foi com uma pelo menos aparente satisfação de dever cumprido e trabalho bem feito que Rui Costa explicou ontem, na BTV, o mercado do Benfica, pondo uma pedra sobre um defeso em que julga ter conjugado os três pilares fundamentais do sucesso: as mais-valias, a contenção da massa salarial e o fortalecimento desportivo. O terceiro ainda precisa de ser confirmado no campo e não passa, por enquanto, de convicção do presidente dos encarnados, mas os dois primeiros são mensuráveis – e um ainda ontem recebera um reforço interessante, na divulgação do relatório semanal do Observatório do Futebol, do Centro Internacional de Estudos de Desporto, da Universidade de Neuchâtel. Aproveitando o encerramento do mercado, os suíços atualizaram o seu ranking dos clubes que mais lucros de transferências apresentaram a dez e a cinco anos, colocando o Benfica no primeiro lugar em ambos os casos (pode consultar o estudo aqui). No balanço entre vendas e compras feitas desde 2014, os encarnados apresentam um saldo positivo de 764 milhões de euros, que são mais 330 milhões do que o segundo da tabela, o Ajax. A cinco anos também lideram, com 372 milhões positivos, mais 20 milhões do que os neerlandeses. O Sporting aparece em quinto na tabela a dez anos (com 376 milhões positivos) e em sexto na classificação a cinco anos (215 milhões), o que vem conferir algum sentido às declarações de Morten Hjulmand. Convocado para a sua seleção, o dinamarquês que os leões foram buscar a Itália disse ao Tipsbladet que deu “um passo” em direção a “algo maior”, pois o clube “tem um histórico comprovado de enviar jogadores para as maiores equipas da Europa”. É claro que isto, em si, pode ser bom como pode ser mau, tanto pode ser motivacional como pode ser sinal de desprezo – ainda que se perceba agora que pelo menos tanto como o convencimento de que foi alvo por parte de Rúben Amorim, que lhe terá garantido que iria ser pedra importante no esquema coletivo, esta aspiração terá tido o seu peso na decisão do jogador dar o que há uns anos seria visto como um passo atrás e trocar a Serie A pela Liga Portugal, ainda por cima num ano sem Liga dos Campeões em Alvalade. O que Hjulmand disse não foi muito diferente do que tinha dito Enzo Fernández quando chegou ao Benfica, vindo do River Plate, há um ano – e, vistas bem as coisas, ninguém terá grandes razões para se arrepender. Daí que o argentino seja apontado como referência, uma espécie de modelo de escala. Que parte de Enzo – ou, se formos muito otimistas, quantos Enzos – valerá Hjulmand? E Alan Varela, o argentino que no domingo se estreou no FC Porto? A O Jogo, Lisandro López, o ex-defesa central do Benfica que esteve com ele na Argentina, já disse que o novo médio portista até “tem caraterísticas similares ao Enzo”. No fundo, está só a dar o seu contributo para a construção do enredo que Rui Costa explicou na intervenção de ontem. “Não há clube em Portugal que consiga pagar ordenados sem vender jogadores”, disse o presidente benfiquista. E a boa notícia é que neste Verão todos parecem ter conseguido sair do processo mais fortes.
Murta e o eletricista. Indignou-se, com razão, o presidente do Boavista, Vítor Murta, porque ninguém dá o devido crédito à campanha que está a ser feita pelo clube, um dos líderes da Liga num ano em que, ainda por cima, não pôde fazer contratações. Fê-lo num tweet que, já se viu, quando se está num clube de classe média, é a melhor maneira de chegar às páginas dos jornais, porque estes deixaram de ter meios para andar no terreno e trocaram a busca de notícias junto dos protagonistas por uma muito menos onerosa brigada de sentinelas atentas às redes sociais. Falta completar o outro lado da quadratura do círculo e entender como é que depois passa de uma breve com meia dúzia de linhas se não fala para o mercado preferencial dos consumidores, que é o Benfica, o FC Porto ou o Sporting. A tentativa foi boa, porque se colou ao tema quente do momento, o falhanço dos meios técnicos no VAR do FC Porto-FC Arouca, mas também porque mete o dedo na ferida. É importante perceber por que razão os meios técnicos falharam no Dragão, se foi por erro do regulamento na inexistência de backup, por erro humano na busca da tomada correta onde ligar o equipamento, ou por sabotagem de quem não queria que as coisas funcionassem. Mas enquanto não se perceber, não encher o ciclo mediático com especulações em torno do tema não é “cobardia” ou “encobrimento”. É recusa de ir buscar receita onde ela está. Ainda assim, devia ser feito, porque também é defesa da sanidade mental dos consumidores. É por isso que todos nós – jornalistas, editores, clubes de classe média e consumidores – devíamos ir à procura das razões pelas quais não estamos hoje a falar do pêndulo que é Seba Pérez, do novo papel de Makouta na organização defensiva boavisteira, das revelações João Gonçalves ou Tiago Morais ou da explosão de Pedro Malheiro.
A resposta de Vitinha. A resposta dada por Vitinha na conferência de imprensa de ontem da seleção nacional parece estar em consonância com o tweet de Murta, mas apela a um plano paralelo – e, na verdade, o que tem mais em comum é a recusa de responsabilidades próprias da classe que representa. Diz o médio do Paris Saint Germain que se fala demasiado do que está para além do jogo e que é por isso que estamos atrás da Eredivisie nos rankings da UEFA. É um salto grande de uma coisa para a outra, mas entendo a ideia. O problema é que, tal como Murta não teve dúvidas em encontrar culpados únicos para o ostracismo ao Boavista – são os jornalistas, esses malandros... – e não admite que também os clubes são responsáveis, por na sua sanha de controlar a comunicação terem começado a meter mais e mais barreiras entre nós e os protagonistas, Vitinha também segue essa cartilha. Fala-se demasiado “de tudo o que não é o jogador ou o futebol jogado”, queixou-se o médio. E, como Murta, tem razão. Como todos os dirigentes de clubes, porém, falta-lhe admitir as responsabilidades da sua classe. Porque se se fala cada vez mais dessas coisas extra-futebol é em grande parte porque os jogadores normalizaram a batota, as simulações, as tentativas de ganhar penaltis e expulsar colegas de profissão para daí tirarem dividendos desportivos. Não são diferentes dos meios de comunicação social que perceberam que o meio mais rápido de ganhar é metralhar em cima de temas tórridos, mesmo quando não há nada de novo a dizer sobre eles. E enquanto os jogadores não reconhecerem isto como classe, não avançamos.
este futebolinho tuga está cada vez pior